A revista Ipsilon do Público (19.06.2020) publicou um trabalho sobre Angela Davis, a ativista dos direitos dos negros e das mulheres, com uma entrevista em exclusivo conduzida por Isabel Lucas — “Acabar com o racismo é também acabar com os grandes problemas do mundo” — e, a propósito da edição em Portugal do seu recente livro “Liberdade é Uma Luta Constante” (Antígona), um texto sobre a obra da autora e a sua ligação ao momento atual da contestação antirracista, da responsabilidade de Cristina Roldão — “De Ferguson, à Palestina e Amadora: o abolicionismo de Angela Davis“.
Filósofa, professora universitária, ex-candidata à vice-presidência dos EUA pelo Partido Comunista nas eleições de 1980 e 1984, Angela Yvone Davis nasceu numa família pobre e negra do Alabama, em Janeiro de 1944. Aos 14 anos ganhou uma bolsa para estudar em Nova Iorque, onde contactou com a militância comunista e com o socialismo teórico. Estudou Filosofia na Universidade de Frankfurt, com o filósofo marxista Herbert Marcuse, e voltou aos Estados Unidos, à Universidade da Califórnia, em San Diego. Doutorou-se em Filosofia na Humbolt University, em Berlim. Antes do julgamento que a tornou famosa, era professora em Los Angeles, mas a universidade expulsou-a devido ao seu envolvimento com movimentos radicais de esquerda.
Questionada sobre se a actual crise gerada pelo coronavírus evidencia as fragilidades do sistema, Angela Davis refere que “as condições da possibilidade de um vírus viajar pelo mundo tão rapidamente só podem dar-se porque existe um capitalismo global. E quando vemos os muitos problemas que emergem, como a falta imediata de algumas mercadorias, verificamos que isso é um reflexo da produção just in time, que é uma característica do capitalismo global, da privatização do sistema de saúde que criou um sistema baseado no lucro. Um sistema de saúde desse tipo não está habilitado para lidar com uma coisa como o coronavírus”, numa clara menção ao sistema dos EUA e à grave expansão pandémica.
Na sua extensa entrevista, Angela Davis responde à questão sobre a “interseccionalidade”, a relação entre racismo, opressão de género e classe, referindo que “muito antes do termo interseccionalidade estar em voga, eu sentia que ao falar destas questões elas não podiam surgir desligadas; havia uma inter-relação de temas que deveriam ser considerados em simultâneo. Quando escrevi Women, Race, & Class [1981] pensei na longa história que incluía exploração económica, pobreza, segregação, racismo. Mas também na opressão das mulheres. Muitas mulheres negras debruçaram-se sobre questões de género. Como eu. Chamaram-lhe feminismo negro por ter a consciência de que género, raça e classe não são dissociáveis. Tem sido um modo de tratar questões de género que sempre reconheceu e aceitou a interseccionalidade. É uma afirmação com muitas décadas: perceber como é importante tocar muitos temas e problemas no contexto social.”
Ao abordar o impacto da actual crise nas eleições presidenciais nos EUA, Angela Davis expressa a esperança de que o movimento “permita organizarmo-nos para impedir a reeleição do Presidente que ocupa actualmente o gabinete. A resposta ao coronavírus foi um desastre e parece não respeitar o sofrimento que apareceu em todo o mundo em curto espaço de tempo. Há muita tensão social. Tudo isso demonstra que a Presidência actual não está à altura desta crise. Estou esperançosa que torne mais fácil a organização da sociedade para derrotar Donald Trump na eleição deste ano.”
A vida e obra de Angela Davis estão profundamente marcadas pela crítica ao sistema prisional de um ponto de vista antirracista, feminista e anticapitalista, refere Cristina Roldão no seu artigo. O carácter global da violência de estado sobre corpos negros não pode ser dissociado das origens coloniais do capitalismo avançado, nem do que vimos ser o “complexo industrial prisional” globalizado.
Como refere Davis, a experiência da era Obama mostrou que “black faces in high places” não é base para um projeto revolucionário de massas que só poderá ser organizado nas ruas, por força de base comunitária. Outro aspecto que a autora realça é que, embora figuras como Martin Luther King e Malcom X sejam inspiradoras, é preciso romper lógicas de organização assentes em lideranças individuais (componente ideológica central do neoliberalismo), carismáticas e masculinizadas. Esse é um trabalho que o Black Lives Matter tem realizado. Embora Alicia Garza, Patrisse Cullors e Opal Tometi sejam as mulheres negras fundadoras deste movimento, o protagonismo e a liderança são descentralizados e colectivos.
A finalizar, Cristina Roldão refere-se ao livro de Davis agora editado em Portugal, citando uma pergunta crucial: como fazer para que a luta pela igualdade ultrapasse os limites reformistas da ideia de “direitos iguais” e seja cada vez mais uma luta por um modelo de sociedade estruturalmente igualitário? “Não quer isto dizer que os direitos civis não sejam extremamente importantes, mas a liberdade é muito mais ampla do que os direitos civis”.
John Lennon e Yoko Ono dedicaram-lhe uma canção, Angela, os Rolling Stones, outra, Sweet Black Angela, o italiano Virgilio Savona gravou Angela, o pianista de jazz Todd Cochran escreveu Free Angela e Herbie Hancock dedicou-lhe Ostinato: Suite for Angela. Ela era o rosto que congregava ideais de liberdade, justiça, associados a movimentos de luta pelos Direitos Civis, das mulheres e dos negros. Radical, militante comunista, fez parte dos Black Panthers e esteve ligada ao Black Power. Foi acusada de homicídio (anos 70), rapto e conspiração. Não se entregou. O FBI colocou-a na lista dos dez mais procurados. Tinha 26 anos quando foi capturada. Esteve presa durante 18 meses e desencadeou um movimento mundial pela sua libertação. A 4 de junho de 1972 foi absolvida.