Ciganito! E se fosse um aluno.

Esta semana o Encarregado de Educação de José anulou a matrícula do seu educando no Agrupamento de Escolas. Afinal, o rapaz completou 18 anos e, depois de repetidas retenções, frequentava o 8º ano de escolaridade; que futuro? Já antes, o primo de José fizera um trajecto similar, mas mais modesto. Anulou a matrícula quando completou 18 anos e, depois de repetidas retenções, frequentava o 7º ano. Apetece perguntar, como foi possível este percurso? O facto de José ser considerado, no Agrupamento, um “aluno de etnia cigana” pode ser relevante.

Os familiares de José parecem não ter depositado grandes esperanças no seu percurso académico. Não se coibiam de o retirar das aulas quando necessário para a realização de tarefas domésticas ou laborais. E pareciam fazer questão de cultivar algum distanciamento face à modernidade veiculada pela Escola. Uma instituição, aparentemente, percepcionada como representante do Estado. Em boa verdade, uma postura semelhante à de algumas outras famílias da vila, de boa vizinhança e certificados hábitos, todavia, com menor visibilidade. Adiante. Provável, é o rapaz ter entrado na sala de aula sem grande expectativa e com alguma reticência. Entrou já a perder.

José é, reconhecidamente, astuto e inteligente. Beneficiou de acompanhamento tutorial, sobretudo, por razões comportamentais. Não foi necessário incluí-lo num programa para os alunos com necessidades específicas tal como o seu irmão e os seus primos, com tarefas mais vocacionadas para as artes. Por isso, nunca foi afastado da sua turma e nem reformulado o seu currículo. De resto, ao invés, dos seus parentes, ele lê com fluência. Ainda assim, não lhe foi possível concluir o terceiro ciclo de escolaridade… Resta saber da possibilidade.

Neste Agrupamento são disponibilizados aos “alunos de etnia cigana” todos os apoios pedagógicos considerados adequados. Isso é inquestionável. Não tenho memória de outros a que tenham sido dispensados mais recursos humanos. Os relatórios previstos foram preenchidos pelos correspondes relatores. Diria o bom burocrata, a taxa de execução foi a planeada e a taxa de sucesso apreciável. Não obstante, estando no 3º ciclo continuam a juntar letras para soletrar palavras…

Poderá ser pertinente observar a prática. A sério, com um olhar crítico, incisivo, desassombrado. Com coragem. E questionar. Por exemplo, os recursos disponibilizados são implementados em função dos alunos ou do preenchimento de horários laborais? As respostas, por muto inquietantes que possam ser, não devem ser negligenciadas.

Por hipótese, e se o aparato burocrático/pedagógico servir para, simplesmente, acomodar os “alunos de etnia cigana”. Aquietá-los no sistema. Subalternizando objectivos mais audazes de aprendizagem. Será satisfatória, ao nível do 3º ciclo, a falta de competências da leitura? Seria distópico pensar numa encoberta certificação de comportamentos problemáticos. Como a normalização da repetida falta de assiduidade ou dos acordados “casamentos” entre menores. No limite, esta acomodação poderá consubstanciar uma insuspeita forma de guetização? Um raciocínio mais desajustado chegaria a essa conclusão.

Seguindo esse raciocínio mais desajustado haveríamos de perceber o percurso educativo de José traçado com uma linha fina e bruxuleante. De difuso sentido. A meta definida pelo passar do tempo. Entre o desinteresse familiar e a indulgência institucional cumpriu a certeza tantas vezes reiterada: “os ciganitos não querem nada com isto”. Porventura, de forma involuntária.

Esta eventual complacência da comunidade escolar parece contrastar com a crescente atenção das direcções e estruturas intermédias na sinalização de práticas problemáticas. Será que os “alunos de etnia cigana” consubstanciam um grupo merecedor de uma atenção distinta ou, mesmo, distinto?

Indo mais longe. Será procedente a Escola identificar “alunos de etnia cigana”? Deixo de lado o confronto entre os paradigmas de redistribuição e de reconhecimento. Por agora, serei breve. Haverá quem argumente favoravelmente na condição dessa identificação conduzir a uma discriminação positiva. Por vezes, de resultado duvidoso. Considero preferível uma Escola capaz de acolher sujeitos por inteiro, mas sem etiquetas. Melhor, capaz de desconstruir as etiquetas. Onde José fosse um aluno.

Luís Miguel Pereira

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