AS PRIORIDADES DE UM POVO EMPOBRECIDO – PAZ, SALÁRIOS, HABITAÇÃO E AMBIENTE

A guerra na Ucrânia que nos afeta a todas/os, a decisão do BCE de continuar a subida das taxas de juros com consequências na erosão salarial e em mais dificuldades na habitação, o facto de os meses de junho e julho terem sido os mais quentes historicamente registados com um cortejo de fenómenos meteorológicos extremos e milhares de mortos, marcam a situação nacional e internacional. Tudo isto é grave, atinge o mundo e o ambiente em geral, mas particularmente as classes trabalhadoras e os setores sociais mais fragilizados, confrontados com a inação dos governos.

Cessar-fogo E DIGNIDADE em vez de medalhas e escalada militar

A condenação da invasão da Ucrânia pela Federação Russa é, e tem sido desde início, inequívoca. Isto não nos deve impedir de ter a clareza de considerar que não há solução militar para esta guerra, como está a ser demonstrado pelo impasse criado no campo de batalha. O seu prolongamento está a provocar uma enormidade de vítimas militares e civis, de um e de outro lado do conflito, que só pode servir os interesses do chamado eixo euro-atlântico, subjugado pelos EUA e pela NATO.

A condenação da invasão não nos obriga a qualquer compromisso com o antidemocrático regime ucraniano, que persegue e reprime as oposições, ilegaliza partidos e sindicatos, alimenta a corrupção, persegue cidadãos e envia-os para a frente de batalha como carne para canhão. À ideia de “Putin fora da Ucrânia e NATO fora da Europa” acrescentamos a exigência do cessar-fogo imediato, o estabelecimento de um plano para a paz, como o presidente Inácio Lula da Silva tem vindo a defender, e a solidariedade com o povo e a esquerda ucranianas.

A recente visita do Presidente da República à Ucrânia e a condecoração com a Ordem da Liberdade do presidente ucraniano foram indignas e deviam ter merecido a repulsa de toda a esquerda. Marcelo Rebelo de Sousa foi à Ucrânia para defender, inequivocamente, o prolongamento da guerra, o fornecimento de armas que assegure a continuação do conflito, a exaltação de Zelensky e do seu regime autocrático, a expansão da NATO a Leste com a integração da Ucrânia naquela organização militar agressiva. Marcelo foi defender o que o Governo português e a senhora von der Leyen também defendem: a continuação do martírio e da destruição em nome dos “superiores interesses” das potências hegemónicas. A esquerda não se pode deixar confundir com estas posições.

Aumento de salários e pensões contra a inflação

Aa inflação em Portugal acelerou e voltou a subir para 3,7% em agosto, com as previsões para a UE atingirem os 6,5%. Para os liberais que dominam as instituições europeias, o problema da persistência da inflação está nos salários e nas exigências de aumentos salariais. Querem medidas de compressão do lado da procura, através do aumento da taxa de juros, restrições orçamentais nos serviços públicos e arrefecimento da atividade económica para aumentar o desemprego.

O caso português, tal como o de outros países, desmente que a instabilidade e a espiral inflacionista tenham origem na procura (poder de compra dos salários), mas no lado da oferta (capital). O aumento especulativo dos preços das matérias-primas e o crescimento dos lucros de alguns oligopólios (energia, grande distribuição, etc.) associados à especulação financeira, estão a determinar o prolongamento inflacionista. De facto, a recuperação dos salários está muito aquém das perdas motivadas pela inflação, enquanto os lucros dos setores dominantes do mercado crescem a cada trimestre.

Uma política de esquerda, que não é a do governo PS, optaria pelo controlo dos preços/lucros de setores essenciais, da alimentação à energia, por aumentos salariais e das pensões, no público e no setor privado, por medidas orçamentais e de alteração da legislação laboral de combate à precariedade/plataformização e pela promoção da contratação coletiva, em vez de apoios pontuais que não influenciam o salário, são apenas temporais e facilmente reversíveis.

A garantia para impedir o empobrecimento está nos aumentos salariais e nas alterações à legislação laboral. Segundo o INE, os salários nominais em 2022 evoluíram de forma muito débil, tendo ocorrido uma queda acentuada dos salários reais e, consequentemente, o empobrecimento de vastos setores dos trabalhadores.

Alterações no IRS são positivas se conjugadas com o aumento do salário direto, mas não decisivas no combate aos efeitos da inflação. A distribuição funcional do rendimento na economia portuguesa aprofunda-se em desfavor dos trabalhadores que estão a sofrer os custos das sucessivas crises. Para além da inflação erosiva de salários e pensões, o problema desagua no agravamento da desigualdade distributiva entre trabalho e capital.

O OE 2024 deve garantir aumentos nos salários dos setores em funções públicas e investimento nos serviços públicos. Esta política pressionaria o setor privado e daria alento às reivindicações sindicais. O aumento do SMN e das pensões, as alterações na legislação laboral, sobretudo no estímulo à contratação coletiva, devem continuar a estar no centro da nossa intervenção política.

Emergência climática impõe medidas urgentes que protejam o ambiente e quem trabalha – transição energética e agroecológica

Temos assistido com inusitada frequência à ocorrência de fenómenos meteorológicos extremos que provocam mortes e desalojados, extensos incêndios rurais e destruição de infraestruturas. Os meses de junho e julho foram historicamente os mais quentes desde que há registos, trazendo à evidência a crise com origem nas alterações climáticas. Os relatórios, as previsões e os avisos dos cientistas sobre esta matéria são conhecidos, mas os governos insistem em privilegiar a obtenção de lucros pelo capital, ao combate às alterações climáticas com adoção de medidas que a urgência reclama, como investimento nas transições energética e agroecológica.

O último relatório da ONU não deixa margem para dúvidas sobre a emergência climática em que vivemos, que exige medidas para evitar que o aumento limite de temperatura de 1,5ºC seja esgotado antes de 2030. Para isso é necessário atacar os interesses capitalistas da indústria fóssil, garantindo os direitos dos trabalhadores desses setores, e reduzir a nível mundial para metade as emissões de GEE até 2030. Os planos do Governo para investimento nos combustíveis fósseis, em especial no gás, e na mineração, como é o caso do lítio, são contraditórios com uma política ambiental de combate às alterações climática.

Veto de Marcelo ao “Mais Habitação” foi pelas piores razões

São conhecidas as insuficiências do pacote governamental “Mais Habitação” para enfrentar a crise habitacional que atinge largas camadas da população, principalmente as de rendimentos mais baixos, mas que também afeta as de rendimentos intermédios.

O pacote governamental “Mais Habitação” não tem medidas concretas e eficazes para baixar as rendas e os juros do crédito, para promover a oferta pública com rendas acessíveis, nem para controlar a especulação. Na realidade, o Governo mantém a mercantilização da habitação como política estruturante, apesar de o direito à habitação digna estar na Constituição, a Lei de Bases da Habitação considerar que compete ao Estado garantir esse direito e que as casas têm uma função social que se sobrepõe a qualquer outra, nomeadamente à mercantil.

O veto do Presidente da República foi pelas piores razões. Seguiu a argumentação da direita, das associações de proprietários e do AL. Reclamou um consenso mais alargado sobre a matéria na AR, porém, com os pressupostos políticos do veto, o consenso só poderia acontecer com a direita que reclama o domínio da habitação pelo mercado. A esquerda deve demarcar-se deste veto, que tem como objetivo fortalecer politicamente as propostas da direita, não deixando de manter as críticas ao pacote governamental. Caso contrário, a esquerda fica colada e enredada no discurso da direita, como o líder do PSD não se cansa de afirmar.

No problema da habitação, há dois temas sob forte ataque da direita – arrendamento compulsivo dos devolutos e limitações ao alojamento local (precisamente os que Marcelo mais falou) – não porque as fórmulas do Governo sobre estes aspectos e outros sejam eficazes, mas porque suscitam a ideia de que é necessário e possível mobilizar e regular a propriedade privada. O capital e os liberais abominam estas ideias.

O veto está condenado ao fracasso pela maioria parlamentar, apesar da agitação dos setores mais conservadores do PS que querem dar ouvidos a Marcelo. Contudo, as insuficiências do pacote manterão a falta de resposta à crise e, em primeiro lugar, às muitas dezenas de milhares de famílias numa situação habitacional indigna, assinaladas nos levantamentos que estão a ser feitos no âmbito das Estratégias Locais de Habitação. Serão cerca de cem mil famílias que precisam, e já precisavam, de uma casa digna.

Mobilização pública de fogos devolutos – queremos agora “Casas para Viver”

Para além das reivindicações já conhecidas, a esquerda tem trazer para o debate e o confronto político a urgência da mobilização pública de fogos devolutos. Efetivamente, num país indigente em termos de habitação pública e com décadas de falta de políticas de promoção da habitação acessível, só o arrendamento forçado de milhares de fogos devolutos disponíveis para habitar, em grande parte propriedade de fundos imobiliários especulativos, poderá constituir uma resposta eficaz e a curto prazo para quem precisa de casa, ao mesmo tempo que vai pressionar a quebra do valor das rendas pelo aumento da oferta com controlo público.

Os lobbies da construção querem mais construção, mesmo sabendo que não há recursos para tal e que para edificar mais de 100 mil casas para renda apoiada ou acessível demoraria vários anos.  É incompreensível que a esquerda não coloque esta questão como prioritária numa lista reivindicativa pelo direito à habitação. Os números do INE (Censos 2021) sobre os devolutos é incrível: só na Área Metropolitana de Lisboa foram registados 159 mil fogos devolutos e na do Porto 83 mil. A nível nacional são 720 mil!  Como refere um artigo no jornal “Le Monde Diplomatique” de agosto, de Rita Cachado (investigadora no ISCTE, CIES-UL), “Se sabemos que há muito mais casas vazias do que pessoas a precisar delas, por que razão se fala na prioridade de construir? Que números teremos de reabilitação em vez de novas construções? A quantas famílias será garantido o mix social em vez de guetização? (…) A habitação a custos controlados ou acessível deve estar integrada nas cidades. Esses bairros e essa habitação integrada já existe; é mesmo preciso construir ou bastaria enfrentar os devolutos de frente?

É preciso retomar e dar força à ideia de que há “Tanta casa sem gente e tanta gente sem casa!” a começar já nas manifestações do movimento “Casas Para Viver”, no próximo dia 30.

Setembro.2023

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