por Adriano Zilhão
Acórdão dos serviços mínimos para a greve dos profissionais da educação
Um passo qualitativamente novo na caminhada para a quase ilegalização do direito à greve foi dado pelo “acórdão” do tribunal arbitral mandado constituir pelo governo para decretar serviços mínimos à greve dos profissionais da educação convocada pelo STOP. Esta greve tem sido reconduzida com pré-avisos que cobriram grande parte do mês de Janeiro e continuam para Fevereiro.
Os árbitros representam respectivamente: órgãos do poder judicial (donde sai o presidente do colégio); o lado patronal (que é o governo); e o lado dos trabalhadores. Para cada arbitragem, os três árbitros são escolhidos por sorteio. Os nomes a sortear constam de três listas de nomes separadas, válidas por três anos. Na lista de árbitros “representantes dos trabalhadores”, os nomes são de juristas indicados pelas organizações sindicais representadas na “Comissão Permanente da Concertação Social”, a UGT e CGTP.
Não são, portanto, escolhidos pelo sindicato ou grupo de trabalhadores que decreta a greve. A tal comissão permanente de concertação social faz parte do Conselho Económico e Social, um obscuro órgão do Estado, incumbido, no essencial, de ganhar a anuência das cúpulas sindicais para a acção do governo e evitar “conflitos sociais”: uma instituição herdeira da câmara corporativa do regime salazarista, reintroduzida na lei portuguesa para espelhar a ordem vaticana dos tratados europeus.
Assim, com dois representantes do Estado (poder judicial e governo) e um jurista, neste caso um nome indigitado pela UGT, pouco admira que o acórdão tenha sido votado por unanimidade – apesar de, pela sua natureza e implicações, ele abrir portas à quase completa ilegalização do direito à greve.
O acórdão começa por reconhecer, que remédio, que a greve é um direito constitucional fundamental, insusceptível de restrição substancial; mas só para, logo a seguir, acrescentar que, ainda assim, não é um direito absoluto: ou seja, que quando o direito à greve entra em conflito com outros direitos importantes, tem de se ponderar se a greve, pelas suas consequências, lesa esses outros direitos.
Assim se anuncia uma ginástica retórica, que, embora juridicamente miserável, leva aonde que se quer: à destruição do direito à greve.
Por definição, a greve cessa a produção de certos bens e serviços. É assim, porque são os trabalhadores que tudo produzem, não os capitalistas. Se os trabalhadores não trabalharem, nada se produz.
Seja qual for a greve, seja qual for o sector, a cessação da produção importa “consequências sociais”. É assim, por razões óbvias: os bens e serviços servem para alguém e alguma coisa, se não ninguém os produziria. A doutrina oficial do capitalismo diz, aliás, que “o mercado” representa a melhor maneira de satisfazer as necessidades sociais. Portanto, tudo o que é produzido há-de corresponder a uma necessidade social, que deixa de ser satisfeita se a produção for interrompida.
O acórdão cita uma série de direitos fundamentais que a greve dos professores lesaria: começa no direito (das crianças) à educação e, daí vai esticando, até chegar ao direito ao trabalho (dos pais!), que, deixando de ter onde depositar os filhos, vêem “posta em risco” a sua relação de trabalho.
Vejamos: uma greve prolongada dos operários padeiros faria desaparecer o pão dos mercados. Na lógica do acórdão, interferiria, portanto, com o direito à alimentação, visto que praticamente nenhum cidadão pode suprir as suas próprias necessidades em pão. Uma greve prolongada dos operários da construção impediria ou atrasaria a construção de casas, interferindo, portanto, com o direito à habitação dos outros cidadãos (e deles próprios). Uma greve dos condutores de autocarros ou comboios interferiria com o direito dos outros à mobilidade – e até, bem esticado ao jeito do acórdão, com o direito ao trabalho dos que deixam de poder dirigir-se ao seu emprego.
“Provando” que as greves atentam contra uma série de outros direitos constitucionais, no que é, no fundo, um ensaio de considerandos de uma lei de proibição da greve, o acórdão conclui que a extensão dos serviços mínimos não deve depender dos casos (já de si extensos) explicitamente mencionados na lei (que, no caso da educação, se reduzem ao caso do período de exames), devendo antes resultar da ponderação caso a caso das “necessidades sociais impreteríveis” cuja satisfação se entenda a greve prejudicar.
Ora, restrições a um direito fundamental, constitucional e de efeito imediato como o direito à greve só podem, para um jurista sério, resultar estritamente da letra da lei. Se assim não for, tal direito deixa de ter força primária, já que fica a priori sujeito a todo o género de interpretações e ponderações casuísticas – e deixa de ser um direito fundamental, primário.
Acresce que o “sopesar de diferentes direitos” é o domínio da política. Não tem nada de jurídico. É claro que o que os acordeonistas querem é fazer política, derrotar a greve dos professores. Como a Constituição e a lei os obrigariam a só poder decretar serviços mínimos se estivessem directamente em causa exames nacionais (não estão), eles ufanam-se de “fazer jurisprudência”, ao dizer que a extensão dos serviços mínimos há-de passar a ser sempre resultado da apreciação casuística de três indivíduos como eles, controlados pelo Estado.
O acórdão “faz jurisprudência” em mais um aspecto. A certa altura, diz que a “única questão que se coloca ao presente Tribunal Arbitral é se, neste momento, se poderá afirmar, indubitavelmente, que o efeito acumulado destas greves já atingiu o ponto, no que respeita à actividade docente, em que a não fixação de serviços mínimos coloca em causa a satisfação de necessidades sociais impreteríveis (…)”. O Tribunal responde pela negativa (ainda não atingiu); mas adivinha-se a implicação: uma vez estes sábios convencidos de que se tenha atingido o tal “ponto”, e visto que a tal “necessidade social impreterível” só pode valer para todos os alunos por igual, os serviços mínimos a decretar em tal “ponto” serão por certo iguais aos “serviços máximos”: a greve ficará proibida.
Segundo a nova lei, assim fundada pelos acordeonistas, os serviços mínimos passam a depender da opinião política que tais três indivíduos tenham do balanço de ganhos e prejuízos que a greve causa à “sociedade”, segundo os vários direitos em conflito – e se há coisa que não falta são direitos potencialmente em conflito: o direito à propriedade, o direito da concorrência, o direito à educação, o direito ao trabalho, enfim, o que vier a talhe de foice.
Ora, o sopesar desses direitos e interesses em conflito depende estritamente da posição e opinião política e social de cada um. O professor em greve acha que o sacrifício (em primeiro lugar, o seu!) vale a pena para tentar manter o seu salário; reaver os legítimos direitos que lhe foram retirados por um governo anterior; defender o estatuto e qualidade da sua profissão; defender a escola pública e o futuro das crianças: defender, em suma, o direito à educação.
Já outros grupos, sobretudo os que se regem exclusivamente pela lei de Bruxelas e Franqueforte, acham que tudo depende de se o défice sobe ou desce e se o investimento privado, ao lobrigar salários baixos e lucros altos, aumenta, ou, se não, diminui.
O objecto da política não é mais do que a luta entre classes e grupos sociais com interesses que se opõem: lutando cada grupo por que penda para o seu lado a balança de ganhos e prejuízos que certas acções (ou omissões) causem “à sociedade”.
O objecto do acórdão é, assim, político. No fundo, o acórdão diz que deve deixar de haver direito à greve, substituído por um direito a pedir autorização ao Estado para fazer greve, autorização dada segundo o que o Estado entender conveniente, importante ou impreterível.
A política de educação do governo está a pôr em causa o direito à educação, ao deixar milhares de alunos sem professores; ao não assegurar a substituição dos milhares de professores que se aposentarão nos próximos anos; ao não assegurar a formação específica dos licenciados contratados à pressa para tapar buracos; ao não assegurar condições de aprendizagem por impor turmas demasiado grandes, escolas mal aquecidas (atentado, também, ao direito à saúde). Só pelas óbvias opiniões políticas dos acordeonistas se pode compreender não lhes ocorrer que, em tais condições, talvez se impusesse decretar “serviços mínimos” ao governo para salvaguardar os direitos constitucionais dos alunos…
Como tampouco ocorre aos acordeonistas impor ao governo serviços mínimos para resguardar o direito fundamental dos professores a verem os seus contratos cumpridos, quando os rendimentos e as futuras pensões dos que ingressaram de boa fé na profissão foram cortados em 20% ou 25% nos últimos 20 anos, violando expectativas legítimas. Porque não lhes ocorre, por exemplo, impor ao governo o “serviço mínimo” de não riscar da carreira dos professores mais de seis anos de trabalho efectivamente realizado?
Ou, simplificando, porque não ocorrerá aos ilustres juristas sugerir ao governo que acabe imediatamente com a greve e, por conseguinte, com os conflitos de direitos, satisfazendo as reivindicações dos profissionais da educação? Até já António Costa reconheceu que eram justas…
Tal não lhes ocorre; e por uma boa razão: é que nada disto são questões jurídicas. São questões políticas, da luta de classes. Os acordeonistas não fazem direito. Fazem política, fazem luta de classe: fazem a luta de classe do patronato e do seu governo contra os trabalhadores.
O ministro da educação lamentou-se publicamente de não estar habituado a lidar com greves “imprevisíveis”, controladas pelos próprios trabalhadores, em vez das greves simbólicas, um dia aqui, outra jornada acolá, da previsível direcção sindical favorita do ministro; greves só com efeito no bolso dos grevistas, acabando no seu cansaço, na derrota e na desmoralização, sem chegar a assustar o patrão. As greves dos sindicalistas “do sistema”, termo usado com orgulho pelo chefe da Fenprof, M. Nogueira, são fofas para os Costas, não lhes fazem mossa.
Os “serviços mínimos” tornaram-se na arma política de eleição para destruir o direito à greve. A tendência já não se pode ignorar. Os serviços mínimos ultimamente decretados às greves dos transportes já implicam manter pelo menos um quarto do serviço a funcionar.
Agora, é a vez dos professores. O que está em risco, com esta política do governo – é a democracia.
