por Mário Tomé
Bento XVI deixou finalmente os fiéis de que já se tinha distanciado aquando da sua resignação há já uma década. Paz à sua alma, dirão os fiéis cordeiros, que a terra lhe seja leve responderão outros, que seja um fiel mensageiro dos males deste vale de lágrimas que Nosso Senhor parece não ver ou então acha que assim é que deve ser, o que torna todas as preces desnecessárias.
As questões económicas em que a Igreja se embrulha desde tempos imemoriais e a pedofilia em que só se confessa embrulhada desde que a sociedade laica e mesmo agnóstica e ateia se começou a preocupar com base num saber e numa ética a que afinal a Igreja era, e até certo ponto continua a ser, alheia apesar de se reivindicar da intérprete suprema do Bem e do Mal – Palavras do Senhor – parece estarem na origem da capitulação do Sumo Pontífice.
Quem nunca se sentiu desencorajado que atire a primeira pedra.
Dizer como alguns fazem que o Papa Francisco, que nos primórdios do seu pontificado apelou à “revolução dos explorados”, passou por “uma porta aberta” pela doutrina de Bento XVI é um excesso de virtuosismo eclesiástico.
Desde que João Paulo II decidiu, para “libertar a humanidade da idade das trevas” que se anunciava, colocar no centro da elaboração do pensamento da Igreja o cardeal Ratzinger, entregando-lhe a Congregação para a Doutrina da Fé, ambos formaram uma poderosa aliança para glória da Igreja e para derrotar o “ateísmo comunista”, pecado sem perdão que se apossou mesmo do Concilio Vaticano II e dos sectores da Igreja que, sob a inspiração do padre Gutierrez, professaram a teologia da libertação.
A teologia da libertação que ganhou a militância dos sectores da Igreja mais próximos da vida do Jesus “histórico”, empenhou-se em servir os povos oprimidos, com centro nas lutas da América Latina e, simultaneamente, prestigiar a própria Igreja (aliás um dos objectivos que o Vaticano desprezou em aliança com o imperialismo norte-americano e as ditaduras brutais de Somozas e C ª).
«A Ratzinger não faltava o cinismo necessário nem a impiedosa suavidade para impor o dogma duma Igreja orgulhosamente só, afastando-a da mundividência que lhe renovara, até certo ponto, a alma.
«Prometeu a liberdade de estudo e investigação aos teólogos desde que respeitassem à risca as suas próprias directivas na matéria que era suposto eles investigarem.
«Marcian Vidal, Eugen Drewermann e Hans Küng foram teólogos postos sob “inquisição” recuperando a palavra inicial.
«Hans Küng tinha, em 1963, apoiado fortemente Ratzinger para leccionar a cadeira de teologia Dogmática na Universidade de Münster, o que veio a acontecer entre 1963 e 1966. A cátedra de Münster tornou-se um dos esteios para a ascensão de Ratzinger no seio da Igreja e no Vaticano.
«Mas como a missão divina não se compadece com fraquezas humanas Ratzinger, logo que pôde, não hesitou em suspender Hans Küng da cátedra de Teologia do Vaticano. Hans Küng é um dos principais teólogos da Igreja moderna, teve uma intervenção preponderante durante o Concílio Vaticano II e sentiu-se no direito e com moral para acusar João Paulo II de atentar contra o espírito de colegialidade. Para si, mais que da infalibilidade papal, seria necessário falar “de uma Igreja verdadeiramente infalível apesar dos seus erros concretos”. Dito isso, foi-lhe retirada a missão canónica.
«O facto de ele ser um defensor da liberdade religiosa e da concórdia entre as religiões mundiais torna ainda mais curiosa a sua suspensão, dado que deveria ter sido um bom apoio para o proclamado ecumenismo de João Paulo II. Também a ideia fundamental do movimento “Nós somos Igreja”, repudiado pelo Vaticano, seria um bom apoio para o ecumenismo: “A Igreja católica precisa passar a mensagem de que as pessoas são seres humanos antes de serem membros de qualquer comunidade religiosa”.
«O ecumenismo de João Paulo II/Ratzinger começou, pois, por estigmatizar os próprios católicos dentro da igreja: “Nós somos Igreja” (Christian Weisner), “Teologia da Libertação” (Leonardo Boff, Gustavo Gutierrez).
«Em substância o seu ecumenismo reduzia-se à fórmula: “Façam como nós dizemos e contarão com a nossa benevolência”.» (cf. Mário Tomé, «Os Cavaleiros de Deus», A Comuna).
O Cardeal Ratzinger, futuro Papa Bento XVI, foi um inimigo radical e figadal do Concílio Vaticano II, a única “porta aberta” capaz de iluminar a relação da Igreja com o mundo.
O ataque frontal do Papa Bento XVI contra o chamado relativismo, ao mesmo tempo que praticou o relativismo mais oportunista e rasteiro – o perdão pedido por João Paulo II significa o reconhecimento genérico de que o que foi considerado como verdade única e absoluta já o não é, ficando o rasto de tropelias e crimes decorrentes de práticas dogmáticas em nome da Verdade única e absoluta de Deus – foi pretexto para um ataque contra a civilização moderna, contra a ciência e a procura sucessiva do saber, sempre insatisfeita, em última instância contra a autodeterminação do ser humano.
Esse o ataque que, afinal, o Papa Francisco, com outra abertura, está não só obrigado, mas empenhado, a seu modo, em prosseguir. Esta a Igreja do Senhor e de mais ninguém.
Bento XVI deixou-nos.
Façamos votos para que o brilhantismo de que é acusado lhe garanta um lugar à mão direita de Deus.
Para nós, homens e mulheres de boa vontade, talvez seja de seguir o conselho do filósofo Martin Hägglund no seu recente livro «Esta Vida – fé secular e liberdade espiritual», onde defende, socorrendo-se sistematicamente de Marx, um “socialismo democrático”, sublinhando que “a fé que precisamos cultivar não é uma fé religiosa na eternidade, mas antes uma fé secular dedicada à nossa vida finita em conjunto.”
Ite, missa est!
