Usos e abusos
por Adriano Zilhão
No caso da pedofilia eclesiástica, que agora ocupa primeiras páginas, de todos os lados se ouve assim: inaceitáveis, os casos de abuso; queremos saber quantos são, os abusos: são muitos abusos, são poucos abusos, são assim-assim…
Abusa-se da palavra “abuso”, Nela se insiste, vinca-se, repete-se.
Quer-se visivelmente provar que estamos apenas perante “casos”; perante “casos”, portanto, de indivíduos, indivíduos que “abusaram”.
Que abusaram, digamos assim, do poder neles investido, para cometerem nefandos pecados sexuais contra menores.
Que tem isto a ver com a realidade?
Os nefandos crimes são verdadeiros, ninguém se atreve a negá-lo.
Mas o que está passar politicamente é outra coisa.
É que a realidade é mais simples – e muito mais sinistra – e é essa realidade que se tenta apagar.
Os crimes abomináveis que têm vindo à luz um pouco por todo o “mundo católico”, na Europa, na América, não são simplesmente “casos” de “abusos” sexuais da e na Igreja católica.
São casos que ilustram o uso, muito mais do que o abuso.
Durante séculos, o pessoal dirigente e médio da igreja tem desempenhado um papel fundamental na manutenção da ordem. Primeiro da ordem feudal, depois da ordem capitalista.
Esse papel é naturalizar a opressão do grande número pelo ínfimo número.
Relembre-se que a declaração dos direitos do homem da revolução francesa foi uma declaração contra a Igreja e o seu mundo, um mundo em que não havia homens iguais: havia senhores e servos.
Aos quadros da Igreja, para poderem desempenhar eficazmente o seu papel, para poderem manter a autoridade sobre o “rebanho” nos termos da doutrina, pedia-se que “cumprissem” certas normas de comportamento pessoal – normas difíceis de cumprir.
Dava-se-lhes, em contrapartida, um direito natural a privilégios compensatórios.
Um deles era o uso livre de crianças e menores, do sexo que preferissem, para a sua satisfação sexual.
Particularmente dos mais indefesos, como é natural, para evitar chatices com gente grada.
Por exemplo, os órfãos e/ou crianças entregues à própria Igreja por pais sem possibilidades de os manterem vivos. Que os entregavam a uma pia casa, uma casa pia.
Não será por isso que o sr. Ornelas, oportunamente avisado pelo devoto amigo Marcelo do que na justiça se tramava contra a Santa Madre, mete os pés pelas mãos quando lhe fazem perguntas?
Não será por isso que a eminentíssima excelência que sem dúvida é o bispo do Porto não consegue compreender como é que se quer julgar pessoas (activas há uma geração, se não menos) pelos “critérios de hoje”?
Não será por isso que a ainda mais eminentíssima excelência que é o protector da fé Marcelo rejubila com os “fracos números” das vítimas de “abuso” sexual da sua Igreja vindos a público em Portugal?
Como em todos os domínios da vida nesta sociedade de exploração do homem pelo homem e de dupla exploração da mulher, o problema não são tanto os “abusos”.
O problema são os usos.
Só se pode acabar com os abusos, acabando com os usos.

A não referência no artigo, à saída em defesa do Presidente da República, por parte do primeiro-ministro António Costa, não pode ser, seguramente obra de um mero esquecimento. Trata-se de ignorar, pura e simplesmente, o papel de muleta, fundamental na política de paz social e de unidade nacional que, o Presidente da República tem desenvolvido e implicou a Intervenção de António Costa para procurar limpar a sua imagem.
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Sim, concordo com esta abordagem que falta na análise do flagelo da pedofilia. O clero sempre foi ao longo dos séculos uma classe privilegiada e opaca. Os seus desmandos seriam julgados pela justiça divina e não pela justiça dos homens.
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