Superar o modelo de conhecimento ao serviço do sistema

por Sílvia Carreira

O colonialismo vive em nós, é fruto de gerações e gerações que refinaram a ideia da supremacia branca e masculina, o patriarcado e a supremacia humana ao serviço do capitalismo, frequentemente presente nos nossos atos, nas nossas escolhas, nas nossas vidas, mesmo que de forma inconsciente e que digamos ser anticapitalistas.

Várias são as formas que fazem parte desta supremacia e que envenenam as nossas vidas e as nossas relações, tais como o perfeccionismo e o sentido de urgência; a atitude defensiva e o medo de conflito aberto; a valorização da quantidade sobre a qualidade; a adoração pela palavra escrita e de que apenas há uma forma correta; o paternalismo, o individualismo e a sensação de se ser o único; a divisão entre o que se faz e o que se pensa; o açambarcamento de energia e o direito ao conforto como objetivo; considerar o progresso sempre como algo melhor e maior.

Certa ciência denominada de moderna apresenta como características a objetividade, o facto de tudo poder ser mensurável, verificado por experimentação e possível de ser reproduzido mecanicamente. Quer para Bacon quer para Descartes, o grande desafio era dominar a natureza. Descartes, apoiando-se no método, tinha como o desafio encontrar um método de pensamento claro e rigoroso que se pudesse aplicar a qualquer fenómeno, conseguindo desta forma explicar o mundo de maneira clara e convincente. Bacon, apoiando-se na observação, pretendia o conhecimento para submeter a natureza. “Ciência e poder do homem coincidem, uma vez que, sendo a causa ignorada, frustra-se o efeito. Pois a natureza não se vence, se não quando se lhe obedece.”[1] Desta forma começa-se a ver a natureza como uma máquina que pode ser seccionada por partes para melhor ser estudada e submetida.

O modelo mecanicista da ciência moderna aplicado à economia.

As leis mecânicas que explicavam o mundo natural passaram a ser também leis que organizavam as sociedades e a visão de um mundo máquina que se estendeu à economia. Esses grandes pensadores imaginavam o progresso como uma linha ascendente que levaria a seres humanos emancipados da natureza. A economia assumiu os modelos que vinham da física de Newton.

A mecânica aplicada à economia foi muito útil ao capitalismo e foi o argumento, supostamente objetivo, para a disciplina da economia ter um status científico que lhe permitiu formular leis à margem de um mundo muito mais complexo.

Em consequência deste paradigma mecanicista da ciência pretensamente apoiada na objetividade, na escrita e na isenção das pessoas detentoras do conhecimento fez com que se passasse a ignorar todas as outras formas de adquirir conhecimento como a tentativa erro ou a imitação. A sociedade ocidental desperdiçou uma grande quantidade de informação em pouco tempo apenas porque ela não se enquadrava dentro dos parâmetros do paradigma mecanicista, e ao mesmo tempo o seu território perdeu biodiversidade e muitas línguas que eram depósito de conhecimento para a vida, tudo sacrificado em favor da objetividade e da neutralidade desse saber. Na verdade a ciência está bem longe de ser neutra.

A construção do conhecimento fragmentado.

Como o conhecimento da ciência é focado em realidades restritas tudo foi dividido em pequenas partes para ser melhor estudado.

Esta forma de conhecimento constrói uma realidade fragmentada e impossível de perceber como um todo que se interrelaciona. Estuda o sistema circulatório e o sistema respiratório, mas não relaciona os sistemas entre si no sistema corpo nem dentro do sistema em que o corpo se insere ignorando a importância do ar que se respira para o sistema respiratório, por exemplo.

Este conhecimento fragmentado influencia toda a forma de estar e leva a que decisões relativas a coisas como ordenamento do território, criação de infraestruturas, criação de produtos químicos ou de transgénicos é feita ignorando que podem influenciar de forma complexa as relações dentro e fora do sistema. Perdemos conhecimento, deixámos de ter perspetiva global e as alterações introduzidas no sistema têm consequências imprevisíveis.

Mas este conhecimento também é paternalista. Galileu, Newton e os seus seguidores acreditavam que a natureza e os fenómenos obedeciam a leis matemáticas simples. Eles de forma objetiva que eram o Homem (masculino) personalizavam a tomada de posse e o domínio por direito natural [2]da natureza. O pensamento androcêntrico considera as mulheres e as coisas que com elas se relacionam menores. Charles Darwin defendeu ideias como a de que mulheres, crianças e “selvagens” tinham cérebros menores e, consequentemente, menos intelecto. A cultura patriarcal está enraizada neste tipo de conhecimento.

As novas ciências.

Com o desenvolvimento da física quântica no seculo XX, da teoria da relatividade, dos princípios da termo dinâmica e da formulação do princípio da incerteza de Heisenberg  [3] e a teoria do caos, entre outras, foi superado o paradigma mecanicista.  Heisenberg demonstra que na física de partículas a observação altera o comportamento do observado por isso não é possível continuar a seguir o princípio da observação universal.

Uma das novas ciências, a termodinâmica[4], rompe com a pretensão do estudo da realidade em disciplinas separadas, o seu primeiro princípio diz que a energia não pode ser criada ou destruída, apenas pode ser transformada. Isso também é conhecido como a lei da conservação de energia e o segundo diz que se houver tempo suficiente, todos os sistemas perderão o equilíbrio. Este princípio também é chamado de lei da entropia.

A segunda lei da termodinâmica rompe com duas ideias básicas da modernidade. A primeira consiste na valorização do desenvolvimento do conhecimento científico em oposição da valorização da medida e do cálculo, a segunda ideia que se opõe ao pensamento moderno é a da irreversibilidade de muitos fenómenos do universo.

Assim, no mundo existem processo lineares que se podem explicar mediante leis gerais e outos processos não lineares em que o acaso e auto-organização jogam um papel fundamental.

A termodinâmica, especialmente a lei da entropia, teve um papel importante nas ciências económicas. Nicholas Georgescu-Roegen[5], mostra que, mesmo do ponto de vista físico, a economia não pode ignorar o tempo histórico, pois a produção económica é uma transformação entrópica.

Uma ciência económica que é construída à margem da natureza e que ignora o funcionamento do mundo físico e a irreversibilidade dos processos associados à vida só pode caminhar para o colapso como o que se vislumbra com insistência na ultrapassagem dos limites do mundo material em que ela existe.

A ideia da ciência neutra e a sua relação com o mercado.

A versão mecanicista continua a ser a dominante na sociedade e a divulgada em espaços académicos e educativos e os livros escolares têm predominantemente esta visão que é chamada de ciência moderna.

A utilidade desta perspetiva para o sistema produtivo pode explicar o motivo da resistência à mudança de paradigma. A proximidade entre ciência e mercado é clara. A investigação é preferencialmente dirigida para questões que podem ser rentáveis economicamente, porque muita da investigação é financiada por grupos económicos que visam o lucro.

Continua-se a manter a crença de que a comunidade cientifica é neutra e objetiva e que trabalha para o progresso. O mundo cientifico predominantemente decide o que se estuda tentando dar resposta à necessidade de crescimento infinito do capitalismo. O princípio da precaução é muitas vezes ignorado perante a crise ambiental e social que vivemos em favor do lucro das grandes empresas.

Uma ciência mais sustentável.

A ciência tal como o planeta tem limites. A verdade é que a natureza sempre impõe limites, mas a tecnologia obcecada pelo crescimento do lucro e do poder não reconhece limites colocando em perigo a estabilidade dos complexos sistemas que mantêm a vida.

Por isso a aplicação do princípio da precaução é fundamental e implica que se inverta o ónus da demonstração da inocuidade de novos produtos e tecnologias.

Há mais de um século que existe um corpo teórico científico capaz de materializar a mudança de paradigma na ciência e na sua aplicação, que coloque como principal objetivo a sustentabilidade. A humanidade necessita de um ciência que procure responder ao problemas mais urgentes que esta enfrenta, como seja saber como podemos viver respeitando os limites e como podemos enfrentar a crise ambiental com justiça.  


[1]NOVUM ORGANUM, Francis Bacon http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cv000047.pdf

[2] https://www.acnur.org/portugues/2012/06/28/o-legado-de-jean-jacques-rousseau-300-anos-apos-seu-nascimento/

[3] O Princípio da Incerteza, https://rce.casadasciencias.org/rceapp/art/2020/004/

[4] Princípios da termodinâmica, https://www.meteorologiaenred.com/pt/principios-de-la-termodinamica.html

[5] Georgescu-Roegen, The Entropy Law and the Economic Process (Cambridge: Harvard University Press, 1971)

Sílvia Carreira

Um pensamento sobre “Superar o modelo de conhecimento ao serviço do sistema

  1. Grande reflexão. Penso que a “democracia” – aquela que conhecemos – também tem a mesma origem aqui denunciada, já deu o que tinha a dar e é preciso avançar para novas formas. A direita já trabalha nisso, nas suas “novas formas”. A esquerda está atrasada.

    nelson anjos

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