[título do artigo de Luís Fazendeiro, publicado no jorna Le Monde Diplomatique – edição portuguesa]
Em Janeiro deste ano realizaram-se em Lisboa os V Encontros Internacionais Ecossocialistas. Activistas de todo o mundo procuraram responder às questões: como se pode realizar a transformação rumo ao ecossocialismo?; com quem pode esta começar a ser feita?; para onde queremos transitar e que valores deverão guiar a nova organização social e económica de que necessitamos? Um contributo para a discussão.
[Segue-se um excerto do artigo de Luís Fazendeiro * publicado na edição portuguesa de Fevereiro 2022 do Le Monde Diplomatique]
“Os V Encontros Ecossocialistas decorreram na Escola Secundária Camões, em Lisboa, entre 21 e 23 de Janeiro deste ano, tendo sido apoiados por dezenas de organizações espalhadas por todo o mundo, com destaque para a Europa, África e América do Sul. Mais de uma centena de participantes esteve presente no evento, provenientes de cerca de 20 países diferentes, com muitos outros a participar por via remota em várias sessões.

Sem querermos fazer aqui uma pré-história das ideias que alimentam a visão ecossocialista, e que inclui pensadores tão díspares como Marx, William Morris, Thoreau, Tolstoy, Polanyi ou Murray Bookchin, a actualização mais recente desta proposta foi feita por Joel Kovel e Michael Löwy, num seminário sobre ecologia e socialismo, realizado em Vincennes, França, em 2001. No Manifesto que este autores então propuseram pode ler-se que, ao contrário do que sucedeu em 1848, este não se encontra «fundamentado em nenhum partido ou movimento concreto. É apenas uma linha de raciocínio, a partir de uma leitura da crise actual e das condições necessárias para superá-la». Escrito na proximidade dos acontecimentos do 11 de Setembro nos Estados Unidos, os autores salientam logo ao início que «O século XXI abre com uma nota catastrófica, com um grau sem precedentes de colapso ecológico e uma ordem mundial caótica (…). A nosso ver, as crises ecológica e de colapso societal estão profundamente interligadas, e devem ser vistas como diferentes manifestações das mesmas forças estruturais.» É, pois, esta ligação próxima entre as várias crises que nos assolam e a percepção da sua origem comum que une os vários pensamentos de índole ecossocialista, e que ao mesmo tempo sugere linhas de orientação para a resolução das mesmas.
Num texto mais recente, o mesmo Michael Löwy refere que é hoje imperioso que o ecossocialismo critique não só toda a «ecologia de mercado» que não questione o sistema capitalista global (ecoando a velha máxima do activista brasileiro Chico Mendes: «a ecologia sem luta de classes é jardinagem» ), como todo o «produtivismo socialista» que ignore os limites naturais e planetários, sugerindo como alternativa a ambos um planeamento ecológico e democrático. Segundo ele: «Em última análise, a falha fatal do capitalismo verde está no conflito entre a micro-racionalidade do mercado capitalista, com o seu cálculo imediatista de lucros e perdas, e a macro-racionalidade da acção colectiva para o bem comum. A lógica cega do mercado resiste a uma rápida transformação energética, para longe da dependência de combustíveis fósseis, em contradição intrínseca com a racionalidade ecológica».
Por outro lado, uma mera nacionalização dos recursos naturais e da indústria, e a redistribuição dos lucros de forma mais alargada pela população (como foi tentado por alguns governos da América do Sul, numa versão de produtivismo de índole socialista) poderá melhorar em parte o nível de vida dos mais pobres, mas apenas no muito curto prazo, nada fazendo para responder aos desafios ecológicos que comprometem hoje a prosperidade dessas mesmas populações. Nas palavras de Löwy, e fazendo uso da terminologia marxista, seria responder à «primeira contradição» do capitalismo (entre as forças sociais e os modos de produção), sem responder à sua «segunda contradição» (entre os modos e as condições de produção, com destaque para a degradação ambiental). Contradição essa que assume nos dias de hoje, através da crise climática, das taxas aceleradas de extinção de espécies e destruição de ecossistemas naturais, da contaminação de solos, oceanos e cursos de água, entre muitos outros factores, uma urgência existencial que os pensadores do século XIX, mesmo os mais prescientes, dificilmente poderiam ter antecipado.
Como?

Ao longo dos três dias, os activistas foram-se dividindo em grupos, separados por áreas temáticas, ocorrendo as sessões em salas rebaptizadas com os nomes de activistas como Angela Davis, Marielle Franco e Rosa Luxemburgo. Várias das sessões centraram-se em torno das diferentes tácticas possíveis para promover uma transformação do sistema actual rumo a um ecossocialismo possível. Em particular, compararam-se as vantagens e desvantagens de três estratégias: procurar alterar o sistema capitalista a partir do interior, reformando as instituições existentes; procurar construir alternativas fora desse mesmo sistema (como sejam as eco-vilas, cooperativas e diversas comunidades que procuram ser auto-suficientes); criar acções disruptivas, como as que o movimento Extinction Rebellion popularizou, de modo a chamar a atenção para a crise climática. Concluiu-se que todas estas estratégias têm vários pontos positivos e negativos, e que elas podem e devem coexistir, à maneira de uma verdadeira ecologia de movimentos sociais, não sendo mutuamente exclusivas, mas antes reforçando-se mutuamente. Assim, no primeiro caso, e ainda que as mudanças possam frequentemente parecer lentas e pouco ambiciosas, estas têm o condão de atingir uma larga escala e de gerar consenso societal. Já a procura de alternativas práticas ao sistema económico em vigor, ainda que de pequena escala, serve para formular e exemplificar diferentes visões do que é possível. Quanto às acções disruptivas, servem como chamada de atenção aos poderes institucionais e à população em geral, alertando para o facto de que a crise climática não está a ser tratada com a seriedade e urgência necessárias.
Outra parte importante das sessões focou-se na resistência a projectos extractivistas concretos, com destaque para países como os Camarões, Uganda, Bolívia ou as Ilhas maurícias. Em todos estes casos, a noção de solidariedade entre activistas do Norte e do Sul global foi apontada como fundamental para o sucesso de várias lutas, desde a extracção de combustíveis fósseis, à desflorestação e exploração mineira. À medida que o horizonte extractivista se estende para as regiões mais inóspitas do planeta e ameaça os últimos grandes ecossistemas naturais ainda existentes, estas lutas assumem uma importância cada vez maior.
Várias das sessões dedicaram-se ainda a discutir a questão laboral, incluindo as diferenças de abordagem entre as campanhas de Emprego para o Clima, como a que existe em Portugal desde 2016, e os Pactos Ecológicos recentemente propostos, por exemplo nos Estados Unidos e na União Europeia. No segundo caso, vários activistas mencionaram como a maioria dos fundos europeus para a transição energética estão a ser canalizados para as grandes empresas, sendo que a noção de uma transição justa, que não deixe os trabalhadores dos sectores mais poluentes para trás, se encontra seriamente comprometida. Uma dinâmica que foi muito visível recentemente em Portugal, por ocasião do encerramento da refinaria de Matosinhos, pela forma como os trabalhadores foram despedidos, e que ameaça repetir-se em vários ouros casos.
Com quem?

O que nos conduz à questão de com quem deverá esta transição ecossocialista ser feita. Entre os principais grupos de actores identificados estão os sindicatos. No entanto, várias questões foram levantadas em termos do grau de envolvimento dos mesmos na transição energética e ecológica. Segundo Neil Rothnie, que trabalhou durante várias décadas na indústria petrolífera do Mar do Norte, os sindicatos do sector têm sido aliados naturais das empresas, pouco fazendo no sentido de promover um debate sobre alternativas ao petróleo. Escusado será dizer que a solução para a crise climática não passa por prolongar as actividades mais poluentes indefinidamente, de modo a preservar esse tipo de empregos. É urgente que os sindicatos adoptem antes uma postura muito mais proactiva, no sentido de procurarem alternativas ao actual modelo poluente e extractivista, e de assegurarem a garantia de novos empregos para os trabalhadores, no novo sistema energético, que caminha no sentido de ser exclusivamente alimentado por energias renováveis. Embora as campanhas de empregos para o Clima tenham surgido do movimento sindical, durante a última década de 1990, depois da crise financeira de 2007-2008 estes terão passado a dar maior prioridade à luta pela manutenção dos postos de trabalho existentes. É, pois, imperioso que o anterior foco seja retomado e que os sindicatos, sobretudo nos sectores mais poluentes, sejam parte activa da solução.
Outro grupo que beneficiará enormemente de uma reorientação de matriz ecossocialista são as populações do Sul global, onde as piores consequências das alterações climáticas já se fazem sentir, e que menos fizeram para causar o problema, devido às suas reduzidas emissões de gases com efeito de estufa. Mas é também aí que estão a surgir muitas das soluções mais inovadoras, seja ao nível da agroecologia ou de modelos sociais e políticos alternativos. As comunidades indígenas, em particular, possuem a experiência prática de gerir ecossistemas de forma sustentável, nalguns ao longo de milhares de anos, conhecimento esse que é hoje mais importante do que nunca, e que pode ser em parte replicado pela comunidade global, noutros contextos e situações. Além disso, a resolução da crise climática pode e deve ser uma oportunidade para reparar vários dos desequilíbrios profundos e estruturais introduzidos pelo colonialismo europeu e pela subsequente subjugação e exploração destes povos ao longo de séculos.
Para onde?
Das três principais questões abordadas nestes Encontros, esta talvez seja a mais difícil de responder. Importa começar por referir que vivemos num mundo inerentemente material, limitado pelas leis da física, da química e da biologia, em que nem tudo é passível de ser concretizado, ao contrário do que a moderna idolatria tecnocrática procura fazer-nos acreditar. O melhor que podemos fazer é caminhar no sentido de uma sociedade mais justa e equilibrada, sabendo de antemão que esta nunca será perfeita, por definição. E tendo sempre em conta os riscos que representam as utopias e a imposição unilateral de determinados valores por parte de um grupo ao conjunto da sociedade, sem que antes ocorra um debate muito alargado. deixando esta ressalva de parte, alguns pontos comuns emergiram das várias discussões que tiveram lugar.
A questão do trabalho foi reafirmada como central pela maior parte das pessoas e organizações presentes. em particular a necessidade de se repensar a forma como este é encarado nas sociedades actuais, e de questões tão práticas como a redução do horário laboral ou a garantia de emprego universal, que fariam toda a diferença. assim como a necessidade de se evoluir em direcção a uma noção de trabalho socialmente útil, e não da mera criação de empregos não só temporários e mal pagos como, em muitos casos, sem uma verdadeira utilidade para o conjunto da sociedade actual e das gerações futuras.
Outro traço comum prendeu-se com o questionar do paradigma sócioeconómico vigente. A noção de que se todos agirmos da maneira mais egoísta possível estaremos a contribuir da melhor forma para o progresso social tem de ser relegada de uma vez por todas para o caixote do lixo da História, como sucedeu com a frenologia ou o geocentrismo. Ainda que esta ideia, popularizada por Adam Smith e outros economistas clássicos, enha gerado um enorme corpo de teoria económica, com formulações matemáticas elegantes (mas em boa parte inúteis, ou perniciosas), ela encontra-se hoje completamente desacreditada, indo contra os princípios mais básicos da sociologia ou da psicologia comportamental, além de não ter em conta os limites planetários em que a sociedade se insere, enquanto subsistema. segue-se que uma economia baseada no lucro e no funcionamento dos mercados (ditos auto-regulados) será sempre inerentemente instável, além de profundamente injusta – e em última análise insustentável, por muito que procure pintar-se com tons “esverdeados”. (…)
* Luís Fazendeiro – Físico, investigador na área de Energia e Clima na Universidade Nova de Lisboa.

O texto do Luis é certamente um exercício da maior lucidez e objectividade no modo como coloca os problemas e os posicionamentos. Mas, a meu ver, há um elemento crucial em falta neste esquema de pensamento (eco-socialismo). Refiro-me aos tremendos obstáculos que se perfilam nesse caminho e que infelizmente, esta corrente de pensamento nunca procurou aprofundar devidamente, facto que lhe retira alguma credibilidade. Esses obstáculos são da mais diversa natureza e grandeza e vão evidentemente desde os ataques das grandes coreporações apostadas na manutenção do “business as usual” até às próprias limitações das inúmeras soluções quer em movimento quer ainda em projecto. E aqui poderíamos começar pelo problema da intermitência e da sazonalidade que limita as duas renováveis mais usadas, para chegar até à própria dinâmica dos actuais sistemas de comércio e transporte, das respectivas normas e tratados, passando pela imensidade do poder das maiores corporações e pela voracidade dos maiores monstros financeiros que tudo condicionam, isto apenas para citar alguns dos problemas com que o eco-socialismo não se tem preocupado seriamente.
Parece-me que já vai sendo altura de levar muito a sério o estudo e debate dessa vertente tão esquecida pelo movimento, pois o alheamento do problema promete os piores resultados e isso é tudo o que não queremos.
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