Viver é a tradução do termo Ikiru, filme do realizador japonês Akira Kurosawa. Inesquecível, não só porque termina com o protagonista, um idoso, feliz num baloiço, mas porque nos coloca detalhadamente perante o constrangimento do peso da existência quando a opressão ocupa o espaço da liberdade.
Watanabe, como todo o trabalhador que se prese, cumpre diariamente, religiosamente, com as suas obrigações, assumindo mecanicamente as ordens dos seus superiores, sem qualquer preocupação com os destinatários finais.
Quando a morte se aproxima, dá-se conta que a sua vida foi desperdiçada num monte de papelada que nada lhe dizia e corre em busca do prazer, nos locais habituais sem qualquer êxito. E é então que se encontra com uma ex-colega que se despediu do trabalho, porque simplesmente ou sobretudo o trabalho a aborrecia.
Watanabe quer saber o porquê da sua alegria. A jovem trabalhava numa fábrica de brinquedos para crianças e o segredo do seu bem estar residia no pensamento de que o destino do seu labor é o sorriso, a alegria das crianças.
António Damásio explica esse fenómeno muito bem. É um facto, que sentimentos de empatia, de solidariedade, de bondade, ativam a produção, pelo nosso organismo, de autênticas drogas, como a dopamina, com benéficos efeitos para a saúde, para o bom desempenho das nossas atividades.
Efetivamente, o trabalho erige-se como um valor prioritário na nossa sociedade e a produção funda-se nos interesses do mercado cujo valor supremo é fazer dinheiro, mesmo que nos afoguemos em produtos que não satisfazem as nossas necessidades, mesmo que as nossas inclinações sejam desrespeitadas e jovens acordem sem vontade para viver.
Assim fomos educados. De um lado os que querem trabalhar, os trabalhadores, do lado oposto os que se dedicam ao ócio, os preguiçosos. Os primeiros, os que têm força de vontade, os segundos que se deixam levar pelo prazer, fracos e inúteis. A formiga e a cigarra!
A vontade que, aliando o desejo ao pensamento, poderia conduzir com êxito a nossa ação, quando isolada, sem ouvir o nosso corpo, é a responsável pela obediência aos ditames do sistema que assim manipula as emoções que fomos forçados a ignorar, a desconhecer. Sendo que sem emoções não vivemos, é o sistema com todo o seu interesse no lucro, que as acorda, as dirige, as usa conforme os seus interesses.
A direita e a extrema-direita dedicam-se a estudar as ferramentas que utilizam para manipular as emoções ao serviço dos seus interesses.
Na senda da preocupação em entender a raiva explicita ou envergonhada, sobre a questão fraturante do R.S.I. dei por mim a pensar no posicionamento da esquerda.
De facto, a esquerda ignora as duas partes em oposição.
Ignora o sentimento de injustiça daqueles que passaram a vida inteira a trabalhar para sobreviver, submetendo-se aos sacrifícios exigidos, muitos deles, vergonhosamente compensados com pensões de miséria ou baixos salários, ao prometer mais uns euros do que o PS, ao aceitar um salário mínimo que não cobre despesas mínimas.
Ignora o desprezo a que são votados os beneficiários do R.S.I. discriminados quando rotulados de vulneráveis e quando acusados de preguiçosos que vivem à custa dos impostos de quem trabalha. Em situação de isolamento social, descartáveis pelo sistema, são condenados a uma morte social.
O R.S.I. fundamenta-se no auxílio a prestar, na proteção daqueles que se encontram em situação de pobreza extrema. Mas é o sistema que cria a situação de pobreza extrema, e a esquerda tem que o pôr em causa sem descanso.
Uma esquerda que não dá resposta à insatisfação das pessoas, que não as escuta, não pode esperar pelos seus votos.
Miró podia ter sido um descartável. Gostava desde criança de desenhar, queria ser pintor e os restantes saberes pouco o entusiasmavam. Mas o pai queria um futuro proveitoso economicamente para o filho, e exigiu que seguisse a carreira comercial. Sem poder dar aso à paixão que lhe alimentava o espírito, sofre um esgotamento cerebral. O pai cede e Miró vive da sua paixão. O fim da sua história podia ter sido diferente.
* Maria da Luz Leonor
