Levado recentemente à Assembleia Municipal, a alteração por adaptação do PDM de Matosinhos para compatibilização com o POC Caminha – Espinho (Plano de Ordenamento da Orla Costeira), de acordo com o Regime Jurídico dos instrumentos de gestão territorial, constitui um exemplo de como em Portugal as entidades responsáveis conseguem falhar em toda a linha quando se trata de interesses do capital. Apenas a participação cidadã garante uma resposta adequada em termos de proteção ambiental.
A integração do ambiente e do ordenamento do território tem vindo a ser apresentada e defendida como uma das condições essenciais a um processo de desenvolvimento equilibrado e sustentado (O’Riordan e Sadler, 1985; IAIA, 1988; CNUAD, 1992;GLOBE’92, 1992; Partidário, 1993, 1998).” (Partidário, 1999, p. 11)[1]. Este é o percurso a ser feito, também no ativismo local ou na ação como autarcas, mesmo que confrontadas/os com os já conhecidos interesses mercantilistas que veem o território apenas como produção de lucro.
Desde a década de 40 do século XX que as grandes escolas de planeamento têm procurado construir espaços para que as sociedades se harmonizam com o ambiente. A Escola de planeamento clássico – Patrick Geddes, na Grã-Bretanha, e Frederick Olmstead, nos E.U.A., defendia uma abordagem holística do território, considerando que a atividade de planeamento devia estender-se para além das fronteiras da urbe, a partir do seu conceito de ecologia da paisagem que procurava através dessa observação e leitura perceber o funcionamento dos sistemas ecológicos. Apoiada nesse juízo de valor fazia a proposta global de desenvolvimento para a região.
A Escola de Chicago, que acrescenta rigor científico na abordagem do planeamento com o desenvolvimento de um método completamente racional, introduz na década de 60 a abordagem sistémica. A Escola de Investigação Operacional, em Coventry, na Grã-Bretanha, procura um planeamento estratégico que responda ao modelo racionalista. Friend e Jessop, 1969, consideram o planeamento não como uma sequência linear de ações, mas como um modelo cíclico flexível e adaptativo a situações de conflito.
O modelo racionalista e o modelo estratégico são os dois grandes métodos de planeamento sendo, na realidade, frequentemente usada uma combinação dos dois, como é no caso do PDM de Matosinhos.
Os instrumentos de gestão territorial que temos em Portugal são: Planos e Políticas Nacionais; Planos e Políticas sectoriais; Planos e Políticas de Ordenamento do Território (Nacionais, Regionais e Municipais): Planos de Recursos Hídricos; Servidões e Restrições de Utilidade Pública; Agendas XXI Locais e Planos Municipais de Ambiente. Desta forma pretende-se assegurar que o Estado pode intervir na organização do território assegurando o comprimento de regras de salvaguarda ambiental entre outras.
Estes instrumentos concretizam-se no Programa Nacional da Política de Ordenamento do Território (PNPOT); Planos Setoriais com Incidência Territorial; Planos Regionais de Ordenamento do Território (PROT); Planos Especiais de Ordenamento do Território (PEOT); Planos Intermunicipais de Ordenamento do Território (PIOT); Planos Municipais de Ordenamento do Território (PMOT), dentro deste o Plano Diretor Municipal (PDM).
O Plano de Ordenamento Costeiro (POC) é um dos Planos Especiais de Ordenamento do Território (PEOT) e, no caso de Matosinhos, o Plano de Ordenamento Costeiro Caminha – Espinho (POC-CE) que segundo o Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão territorial tem que ser integrado no PDM.
Com a integração deste instrumento, com a devida alteração e adaptação do PDM, espera-se que definitivamente fique garantida a proteção da orla costeira, prevenindo a repetição de episódios infelizes como o que se iniciou em 2017 com a autorização pela CCDR-N e Agência Portuguesa do Ambiente (APA), da construção de um hotel junto à Praia da Memória, em Perafita, Matosinhos, em cima do cordão dunar. A própria APA garantiu que o local não era zona de risco.
Em março de 2018, Eduardo Pinheiro, que na altura assumia funções de presidente de Câmara devido à morte do autarca Guilherme Pinto e que, atualmente, é secretário de Estado da Mobilidade no Ministério do Ambiente, assinou o alvará de licenciamento da obra após receber todos os pareceres por parte das entidades responsáveis, garantindo que a mesma não se encontrava em zona não autorizada. Em setembro de 2019, quando os trabalhos arrancaram, vários moradores contestaram a empreitada e uma associação ambiental avançou com uma denúncia na Procuradoria-Geral da República.
Foi a mobilização cidadã que expôs o que era fácil de ver para todos os que se deslocavam ao local. A obra era um crime ambiental – estava em cima do cordão dunar e em zona de risco. Estranhamente, as duas entidades que deram a validação inicial, CCDR-N e APA, não conseguiam perceber o que era evidente e que mais evidente se tornou quando em 16 de dezembro de 2019, o ministro do Ambiente, João Pedro Matos Fernandes, que até conhecia bem a zona pois foi presidente da APDL, manda instaurar um inquérito para averiguar o processo de licenciamento por “achar estranho”.
Para espanto de todos, a investigação da Inspeção-Geral da Agricultura, do Mar, do Ambiente e do Ordenamento do Território (IGAMAOT), para além das várias ilegalidades que aponta ao processo, conclui que o terreno nunca tinha sido excluído da REN (Reserva Ecológica Nacional). Finalmente e mesmo após insistência na validade da licença, a CM de Matosinhos acabou por ter de embargar a obra após imposição da tutela.
Ficou como memória o esqueleto de betão armado no local onde foram destruídos dunas e ecossistemas, que lembra a vitória e a importância do movimento cidadão que se mobilizou em defesa do ambiente. Quando todos diziam que nada se podia fazer e que a obra tinha todas a licenças, o movimento não desistiu de afirmar a evidência do crime ambiental que estava a ser consumado.
Manifestações, colocação de faixas, artigos de opinião, queixa ao ministério público, contacto com imprensa e outras formas mais criativas, colocaram, durante o período de tempo que decorreu até ao embargo, o assunto na ordem do dia. E a prova de que mesmo com todas as salvaguardas e sendo território incluído na REN, a incúria dos que deviam trabalhar para a salvaguarda do território, na aplicação dos regulamentos e leis, teve que ser vigiada pelos cidadãos porque as pequenas falhas administrativas resultam em grandes atentados ambientais.
Ainda resta saber para quando a retirada do todo o material que lá está e como se vai fazer a mitigação dos estragos entretanto produzidos. Com certeza que essa vai ter que ser outra luta cidadã.
O capitalismo predatório coloca sempre a proteção ambiental em segundo plano tentando contornar os obstáculos que se apresentem no caminho e que impeçam a concretização do seu objetivo de obter o máximo lucro, como foi o caso do Hotel da Praia da Memória cujo proprietário durante 14 anos tentou contornar a lei. Só uma sociedade em que todas/os se sintam parte do todo é que pode ser atuante e impedir os avanços dos predadores ambientais. Participação e ação constituem palavras-chave neste combate.
[1] Partidário, M. d. (1999). Introdução ao Ordenamento do Território. Universidade Aberta.
* Sílvia Carreira
