A GUERRA COLONIAL NÃO ACABOU

Nos 47 anos do 25 de Abril, lembrar os que foram obrigados a combater na guerra colonial não num serviço à pátria, como afirmou Marcelo Rebelo de Sousa na sessão solene do 25 de Abril na Assembleia da República e é a história contada aos pequeninos, mas em defesa dos «Donos Disto Tudo» blindados pelo terror fascista e hoje blindados pelo mercado garante da democracia, como nos afiançou Cavaco nos já longínquos, mas sempre actuais, anos do Tratado de Maastricht .

Prefácio ao livro de João Viegas «Os soldados perdidos»

Por Mário Tomé

*

Mas por um homem ferido/num labirinto perdido/ entre uma morte e uma vida!

Transforma-se o oprimido/em instrumento opressor/Nasce num peito uma guerra!/ E, lá longe…

Na sua terra/o abutre, o carrasco,/o nazi,/ a peste./enchendo o ventre de carne/escreve:/ “DITOSA PÁTRIA QUE TAIS FILHOS DESTE”

António Calvinho

Bardamerda para tal gente e um hurra aos cadáveres de todos os soldados perdidos, afinal todos nós  

João Viegas                                                       

Enquanto um só combatente estiver vivo, enquanto mulheres e filhos permanecerem vivos e com eles os traumas que a guerra colonial provocou nos corpos e nos espíritos, ela aí está: A guerra colonial.

Já muito se escreveu sobre aqueles treze anos que deixaram a marca mais dura e mais profunda no século vinte português.

«Os soldados perdidos», que tenho à minha frente, quarenta e oito anos depois de o seu autor, João Viegas, ter desembarcado no “paraíso de todos os medos” como ele próprio qualificou aquela terra que atrai e repele a um tempo, será, talvez, a última obra literária sobre a guerra colonial escrita por um ex-combatente.

O stress provocado pela brutalidade e pela violência da guerra, pelo que viveram durante aqueles mais de dois anos, uma interrupção brutal na sua vida em construção, na continuidade das suas vidas profissionais, no trabalho da fábrica ou do escritório, no amanho do campo, nos estudos despertou em muitos combatentes mobilizados como carne para canhão, a necessidade e a vontade incontida de pôr no papel, tanta vez numa abordagem literária sem filtro, como quem respira, a realidade nua, brutal, sem contemplações, quase sem narrativa organizada; um grito, um berro tão violento quanto a própria guerra que o determinava.

Uma condenação sem apelo, saída do coração, da chaga aberta para sempre, do coto ainda mais provocador que inferiorizante como foi, aliás, o caso de um dos personagens reais, como são quase todos, senão todos, os que habitam esta obra tão singela e tão poderosa. Refiro-me ao Jorge Carneiro, militar e combatente de eleição e um revolucionário genuíno.

Assim foi a verdadeira aprendizagem daquela guerra para a geração que lhe sucedeu, pela pena de escritores que nunca o tinham sido ou que não constavam (ainda…) do main stream da literatura, a arte a brotar das profundas feridas que lhes marcaram a alma, quer pelo que viram fazer quer pelo que fizeram e nunca pensaram ser capazes de fazer, quer pelo que sofreram na verdadeira solidão dos que enfrentam a morte iminente.

 Em «Os soldados Perdidos» encontramos a revelação profunda do humano pela exposição visceral dos soldados na sua permanente procura da sobrevivência física e anímica numa realidade cuja essência lhes escapa  mas que vão aprendendo a dominar, a cada dia que passa, no confronto com o inesperado, por vezes com o indizível.

Uma inteligência prática e uma capacidade inata de resistência constroem o seu mundo possível servindo-se da própria hierarquia que os sujeita.

O cotejo, que me atrai, de duas obras tão diferentes mas tão próximas como são «Nó Cego», a obra-prima que se impõe como o requiem da guerra colonial e «Os Soldados Perdidos» de João Viegas, decorre de, nesta última, termos um invulgar e poderoso enlace entre a veemente e sistemática condenação da guerra, e desta guerra em particular, a condenação frontal dos assassinos de voz meiga que a impõem por métodos brutais, totalitários e terroristas e a explícita e por vezes entusiástica celebração, mesmo exaltação, das qualidades militares daqueles que são forçados ao combate que está presente em «Nó Cego»

Será uma característica de todas as guerras esta contradição, eventualmente percorrerá todas as obras, mas aqui encontramo-la no centro da narrativa. Aqui não se trata de uma constatação amarga. É uma forma muito bela, quase ingénua, de como se celebra a vida e a sua precariedade.

Falo-vos de um belo livro. Um belo livro caracterizado pela simplicidade narrativa que nos põe no centro da acção, por vezes quase frenética, mobilizados também nós “ao serviço da pátria” como ainda hoje sem qualquer pejo se diz daqueles que foram vítimas do fascismo e enviados para matar os seus irmãos de sofrimento, ainda mais brutal e depois, calhando, morrer.

Um estilo lesto e vivíssimo, sem rodriguinhos nem apaziguadores nem moralistas, sem complicações ficcionais, com a limpidez e a força da realidade crua, acompanha a acção do alferes miliciano Viegas, como tantos outros arrancado aos seus filhos – sem direito a beneficiar da figura de “amparo”, vá-se lá saber porquê, todos sabemos, ele fazia política e propaganda subversiva insidiosa contra a guerra colonial transformada na linha principal de ataque ao fascismo.

Feita a travessia do sofrimento,  da contradição angustiante entre a consciência anti-fascista e anti-colonial e a consciência mobilizadora, tornada necessidade, de que tinha que levar os seus homens de volta para casa, fosse onde fosse e de que  para isso  tinha que saber estar à altura ele, saído de uma instrução precária, feito à pressa, carne para canhão, eis o nosso alferes miliciano Viegas que escapou por entre os pingos da chuva, de volta ao seu CITAC, entretanto assaltado, roubado, encerrado e destruído pela PIDE, de volta ao encontro dos colegas e camaradas  para o fazer renascer e com ele repercutir na arte a paz e a liberdade conquistadas                                                                                                                                           

A beleza dos jogos de amor desprendido, simples e divertido com Bela, a jovem informadora do PAIGC como todos sabiam, mas que oferecia momentos de prazer único naquelas paragens, fê-lo sofrer genuinamente quando foi presa pela PIDE e desterrada para um campo de concentração o Ilhéu das Galinhas no arquipélago dos Bijagós.

Mas teve o prazer de ser o primeiro a receber o seu abraço emocionado e sentir correndo pela sua face as lágrimas de alegria e de emoção e de amor com que Bela se encolheu, feliz de novo, nos seus braços numa festa à liberdade de ambos e de ambas as pátrias.

A narrativa da experiência do alferes miliciano Viegas, desde o embarque no DC-6 para a Guiné, “o paraíso de todos os medos” até ao regresso a casa, dois anos depois de ser encharcado, sem aviso,  pelo seu próprio suor, pegajoso e mórbido, com que Bissau na  “época das chuvas” saúda os que mal assomam à porta do avião no aeroporto da Bissalanca , até dois meses depois do 25 de Abril, quando regressa à ”Metrópole” é um palpitante hino à alegria de viver através das picadas da morte.

João Viegas fá-lo com uma entusiástica e quase absurda delicadeza, que se esconde por detrás da adopção sistemática da linguagem vulgar e rude dos homens na fronteira do suportável. Somos tocados profundamente pela sensibilidade esclarecida dum sentido crítico irredutível decorrente da sua inteligência de artista.

A sempre presente condenação do fascismo e da guerra colonial não prejudica a naturalidade com que, nela metido até aos cabelos, fosse simplesmente um soldado camarada dos homens que comandava desenvolvendo uma relação de grande fraternidade e compreensão com cada um, assumindo naturalmente com grande espontaneidade a capacidade de comando entre camaradas, estabelecendo uma  hierarquia muito própria alicerçada nos humanos valores e interesses comuns: enfrentar as condições adversas, enfrentar aqueles que os obrigaram a designar por inimigos e que, na elementaridade radical  da luta pela sobrevivência, foram forçados a agir como se assim fosse.

O Alferes Viegas e os seus homens construíram um núcleo invencível, e não me refiro às vicissitudes do combate, porque simplesmente foram levados ao entendimento de que a sua vida e a sua humanidade essencial se enraizavam não tanto na eficácia do combate ao inimigo, que, reconheçamos, não era muita, mas na fraternidade e solidariedade que souberam construir.

E uma das coordenadas determinantes foi a compreensão de que a tragédia se combate com a alegria da camaradagem e que a coragem para a viver também pode nascer da própria acção.

Em «Os Soldados Perdidos» o autor, ele mesmo o alferes miliciano Viegas, subverte pela forma como age e se relaciona com os seus homens, os cânones da hierarquia contrapondo-lhe, em pleno teatro de operações, a solidariedade e a fraternidade que constituem a verdadeira camaradagem. E mesmo a base da eficácia operacional possível.

João Viegas consegue, na pessoa do alferes Viegas, pôr em prática os ensinamentos de «A Arte de Ser Chefe» de Gaston Courtois, curiosamente um sacerdote francês ligado ao movimento dos trabalhadores católicos,  estudada na Academia Militar, mas tão só, para tantas vezes serem postos de parte pelo carreirismo, pela opção do mando em vez do comando, pela pusilanimidade da carácter que fornece à burocracia todo o seu poder e pelo cretinismo militar, para parafrasear Lenine quando classifica o cretinismo parlamentar.

Na sua hostilidade radical à guerra e à hierarquia, o alferes Viegas, por amor dos seus homens e não à pátria dos fascistas, capitalistas e latifundiários que, inda hoje, roubam ao povo a sua pátria para lhe imporem a deles, revela-se um verdadeiro comandante, encostando às tábuas a hierarquia que sempre tentou submete-lo às suas regras estritas sem realmente o conseguir.      

Um verdadeiro comandante sempre na primeira linha a enfrentar os perigos que a todos ameaçavam. Ele próprio, ferido em combate e evacuado para de novo voltar por exigência sua para junto dos seus homens, os camaradas a quem pertencia e que comandou nas mais diversas situações ora abrigando-se do tiro dos guerrilheiros ora correndo de peito aberto sobre eles como o exemplo dos soldados africanos sob o seu comando o obrigava.

Mas bom bom era, quando a sorte o proporcionava e surgia a oportunidade ,aquelas boas bebedeiras catárticas conjuntamente com a ida às meninas nas povoações já organizadas de acordo com o cânone colonizador. E para esses momentos de absoluta entrega ao prazer não importava arriscar de novo a vida numa emboscada ou no rebentamento de uma mina. A vida é nossa, vale mais arriscá-la porque nos sabe bem do que sob o látego infernal da hierarquia

Viegas irá, já na última fase da comissão ser colocado no Estado Maior do comando-chefe por decisão directa do general Spínola, que antes de ser chefe dos bombistas do MDLP no intento abstruso de fazer ajoelhar a democracia, esquecido de que há formas mais eficazes como ficou provado, foi um comandante militar de prestígio apesar de condenado a perder a guerra já perdida logo que começou.

Aí, as capacidades de Viegas para analisar as diversas componentes do movimento das tropas baseado nos serviços de informações tornaram-no indispensável.

Sublinhe-se que os serviços de informações militares estavam organizados de acordo com a estrutura NATO a que o governo fascista de Salazar aderiu orgulhosamente para a defesa comum das nações democráticas da Europa, decerto com a garantia de que tais democracias, não apoiariam, como sucedeu, o movimento democrático que timidamente eclodiu em Portugal na sequência da derrota do nazi-fascismo em 1945. 

Isto quer dizer que a capacidade de obter informações sobre os movimentos dos guerrilheiros estavam praticamente a cargo das unidades militares no terreno e, essencialmente, dependente da PIDE e sua vasta rede de bufos. Tal colocava a PIDE numa situação relativamente privilegiada que sustentava uma certa arrogância quando em contacto com as unidades combatentes.

O alferes Viegas, quando ainda no comando operacional do seu pelotão teve ocasião de confrontar uma dessas ratazanas da PIDE dando a fuga a um guerrilheiro de que o pide, o inspector Palma, se arrogara o direito de se apoderar para o torturar e extorquir informações, mostrando serviço.

As relações entre os militares e as polícias políticas foram sempre conflituais, o que se pode atribuir à frequente actividade política e golpista desenvolvida  pelos militares, aliás na tradição revolucionária desde o afrontamento a Beresford que custou a vida ao General Gomes Freire de Andrade. O próprio 28 de Maio de Gomes da Costa teve, no seu desencadear, uma percepção dos interesses populares à flor da pele naturalmente esmagados logo de seguida pela forças do capital e dos senhores da terra organizadas em torno de Salazar. Outras tentativas, várias, de derrubar os fascistas, envolveram civis e, sempre, militares até ao assalto ao quartel de Beja, em 1961, para proclamar o legítimo presidente da República, o General Humbarto Delgado.

Nesta sua nova actividade acompanha de perto o movimento dos Capitães, a aproximação ao PAIGC e as dificuldades inerentes ao encontro de forças beligerantes durante treze anos e que agora se confrontavam ainda mas para encontrarem a melhor forma de se darem as mãos.

O Movimento dos Capitães a caminho de se tornar Movimento das Forças Armadas para atenuar a radicalidade do golpe, enquanto iam morrendo soldados e guerrilheiros esforçava-se por se libertar da estratégia spinolista de manter o império esgotado e apodrecido.

De regresso à vida de cidadão finalmente livre face ao poder, porque livre foi sempre perante si próprio, de cidadão politicamente comprometido e empenhado e não apenas cidadão sobrevivente duma guerra que lhe não dizia respeito mas o confrontou nas suas mais profundas convicções, de regresso à sua actividade profissional num Portugal liberto do fascismo mas ainda e sempre sob ameaça dos “irredentistas”, o professor não descurou a defesa material da liberdade conquistada.

Agora já na sua escola, em Figueiró dos Vinhos, participou entusiasmado na preparação da resistência à possibilidade de uma incursão de um forte grupo terrorista que se constituía do lado de lá da fronteira, na Espanha franquista. A experiência humana e operacional ganha na luta contra a liberdade a que fora obrigado, estava agora pronta para a defender até às últimas consequências.

Duas personagens fundamentais, para além, naturalmente, do alferes Viegas, lui même, balizam todo o conceito estético, humanista e ético de «Os soldados Perdidos».

São elas o Furriel Trindade formado na escola dos Rangers, formando combatentes com elevado grau de eficácia. Ele será o verdadeiro instrutor, o protector durante os combates, o companheiro seguro de tropelias, o amigo e companheiro de todos os momentos.

E o comandante do destacamento de fuzileiros, o explosivo ruivo Labaredas, pronto para acorrer em auxílio sempre que necessário no combate ou na festa com que os combatentes celebram o estarem vivos.

Estas duas personagens, na vivíssima simplicidade com que são descritas, expressam afinal, e de forma tão real, a complexidade radical da vida das tropas especiais, neste caso os “ranger” e os “fuzos”. Eles assumem como sua própria natureza, como justificação do próprio acto de combater numa guerra odiosa, uma superioridade moral não em relação ao inimigo que desse são próximos, talvez mesmo irmãos, numa ética própria, mesmo quando não percebida, que tantas vezes sublima a violência, até quando extrema, no combate que apenas fisicamente os opõe. Trata-se pelo contrário de uma superioridade que os faz permanecer, vivos ou mortos, uma acusação eterna às bestas engomadas que lhes impuseram a maior das violências: tirar a vida aos seus próprios irmãos.

A burocracia virtuosamente assassinada, a hierarquia metamorfoseada no desfrute da fraternidade, da solidariedade, da camaradagem

A humanidade manifestando-se em toda a sua beleza no “paraíso de todos os medos”.

A abnegação e o medo, eis o ser humano na sua totalidade.

Ao longo da leitura destas páginas senti-me contigo meu caro João Viegas. A acompanhar-te nas picadas, nas bebedeiras, nos combates, no estremecimento angustiado perante a tua luta pela vida quando ficaste gravemente ferido, a construir contigo, com o Trindade, com  o Labaredas e a malta toda, pretos e brancos, a caminhada que me ia pôr do lado daqueles com que afinal iria identificar-me e unir forças para liquidar, ainda que só daquela vez, o inimigo comum. Ele aí está ainda e sempre, neste seu actual avatar pandémico de que somos todos iguais à brava.

Fiquei feliz por me teres escolhido para escrever estas linhas e pelo que me fizeste reviver tão bem acompanhado.

Belo livro!

Obrigado, um grande abraço.

* Mário Tomé

Visão | Major Mário Tomé desabafa sobre o 25 de novembro

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