De tudo o que se pode dizer sobre a pandemia de covid-19, uma coisa é certa: ela produziu – e parece que tende a se estender por alguns anos – uma vida (social?) enclausurada e telificada, e, por isso mesmo, sufocante.
Inesperadamente, uma doença cujo vírus se transmite fácil e rapidamente tem feito com que todos os países e governos adotem medidas que, em princípio, “sanitárias”, tornam-se também dispositivos de controle social que enclausuram a vida de cada um e entregam-nas às telas de computadores, smartphones, tablets e outros. Em sociedades onde essas coisas já eram centrais e navegar na web e redes sociais são atividades que fixam as pessoas a maior parte do tempo, a covid fez da “tela” o símbolo da vida enclausurada hoje. “Lives”, reuniões e aulas, com os rostos emoldurados, como se fossem pássaros tagarelas em suas gaiolas, e separados por espaços ignorados, representam bem a prática da telificação no “isolamento social” que a pandemia de covid nos impôs.
A pandemia de covid colocou todos nós na “clausura” da casa, e o isolamento forçado interrompeu reuniões, festas, a livre circulação de pessoas, mas também todas as manifestações coletivas e revoltas em quase todos os países, como se tornou comum por vários motivos: lutas contra desigualdades, lutas contra regimes autoritários, contra violências racista, lutas pela universalização de direitos negados a certos indivíduos e grupos … Parece que o vírus da covid se juntou ao Estado contra as “revoltas” populares, sempre vistas como “perturbadoras da tranquilidade da ordem pública”.
Tudo isso contrasta com o modo de vida de nossas sociedades contemporâneas, “sociedades de indivíduos” (ainda que também de “massas”), sociedades de “direitos” e “liberdades”, nas quais abundam os livres deslocamentos de pessoas, aglomerações festivas, desportivas ou políticas, para não falar de todos os tipos de encontros entre pessoas: encontros de amigos, festas, encontros sexuais. E, mesmo que seja apenas por uma questão de aparência, sociedades onde “ser livre” é um ideal, embora vigiado. Para o sociólogo Michel Maffesoli, sociedades que, embora conservem mais ou menos esses ideais que não praticam, são antes de tudo “presenteístas” em sua cultura, indivíduos e massas não idolatrando em nada o adiamento da vida. Tudo é feito para o consumo do presente, sem preocupação com o futuro, por parte dos indivíduos e das massas sendo sempre o caso de inventarem artifícios para escapar dos controles e regulações que impedem o prazer de viver, de estar juntos, aqui e agora.
Se acrescentarmos que atualmente vivemos em sistemas de sociedades submetidos ao que é chamado por Shoshana Zuboff “a era do capitalismo de vigilância”, as medidas adotadas pelos governos em todos os países, para prevenir a transmissão do vírus, promovem seriamente os ideais de um modelo de sociedade vigiada e vigilante. Segundo a autora, a sociedade do capitalismo de vigilância é a sociedade da Internet de massa, na qual todas as pesquisas ou “navegações” que fazemos nos sites são “acompanhadas” e até mesmo controladas por sistemas de inteligência artificial (o que se denomina “algoritmo” tornando-se um tema quase mítico), que são usados para produzir perfis de usuários e que, para empresas como o Google e outras, são utilizados para constituir “previsões comportamentais” das pessoas, sempre vistas como consumidores. Como denuncia Zuboff, hoje não há quase nada na Internet ou no uso que fazemos de nossos aparelhos (computadores, smartphones, tablets, etc.) que não seja arpoado para fins que não são autorizados e nem mesmo conhecidos. E que não se seja ingénuo para acreditar no engano das “garantias de confidencialidade” que aparecem em todos os sites e redes. Não é mais desconhecido que mercados, Estados e governos ao redor do mundo lucram com informações que são fornecidas de maneira tola por nós mesmos (mas também sem podermos evitá-las completamente). O uso de todos os tipos de tecnologia para fabricar estoques de “dados”, sejam “comerciais”, ou “médicos” ou “sociais” servem igualmente (e ao mesmo tempo) ao “mercado” e ao Estado, para fazer arquivos de tipo “policiais” de todos os nossos passos, seja na própria Internet (onde o “algoritmo” é o Senhor), ou nas ruas das cidades (e da vida), graças ao uso de câmaras de todos os tipos, inclusive aquelas escondidas em ambientes insuspeitos.
Se o sonho de quem projeta e vende as máquinas e softwares que tornam possível a navegação na Internet era ver cada vez mais pessoas com os olhos fixos em telas, sem mais qualquer outro interesse, a pandemia pode ter realizado esse sonho. E a vida enclausurada e vivida na inevitável “tela” obriga-nos ainda mais a usar máquinas e plataformas digitais que são ao mesmo tempo os arpões que nos lançam nas garras da sociedade da vigilância e do comércio a qualquer preço.
E pior: o aprimoramento dos usos das técnicas de detecção de doentes de covid em espaços públicos, em sua circulação nas cidades, como vemos na China, embora algumas já fossem utilizadas por operações de vigilância do Estado, podem ser introduzidas em qualquer lugar e estendidas para monitorar corpos e seus movimentos, havendo pandemias ou não. É impossível imaginar que Estados e governos abandonarão o uso de dispositivos de vigilância que promovem – como diria Michel Foucault – a “governamentalização” de indivíduos de uma forma nunca vista antes.
Por fim, podemo-nos perguntar: a internetização do quotidiano, como vivemos, após a pandemia deixará as pessoas ainda mais rastreadas e, portanto, com maior risco de serem capturadas pelos tráfegos do mercado e de serem mais monitoradas pelo Estado e outros poderes, ou veremos práticas menos alienadas às telas e, ao contrário, mais livres e determinadas a enfrentar o controle e a vigilância? A vida fora de casa, longe das telas (e de suas câmaras escondidas), com amigos, ao lado de anónimos, corpos livres, em conversas descontraídas, na alegria de encontros e festas, corpos inventando espaços heterotópicos (Foucault), sejam “verdadeiros”, sejam imaginários, mas descolonizados, sem as imagens oferecidas pela Internet…
* Alípio de Sousa Filho – Professor e Diretor do Instituto Humanitas, Universidade Federal do Rio Grande do Norte (Natal, Brasil)
