Uma das mais significativas obras da história da arte portuguesa poderá ser “A Sopa de Arroios”, de Domingos Sequeira (1768-1837), desenho a aguarela e nanquim, que está patente no Museu Nacional de Arte Antiga, em Lisboa. Sequeira, de uma forma pungente, deixou o testemunho, corroborado por outras fontes, da imensidão de refugiados que no outono de 1810, desalojados pela política de terra queimada das invasoras tropas napoleónicas, acorreram a Lisboa. Na capital, a esses desalojados, em forma de assistência, era distribuída uma sopa diária no Largo de Arroios. De uma forma detalhista, Sequeira dá-nos a ver quase cada uma das pessoas que compõem aquela sofrida multidão. No desenho, para Sequeira, cada pessoa valia.
2021. A comunicação social não pode deixar de falar em fome, falências e dramas sociais. A tática arrasadora do exército napoleónico é substituída pelos efeitos da pandemia da Covid-19 que surge num quadro social onde já eram muitas as fragilidades. Ainda não assistimos nos dias de hoje a uma visão das dimensões da desenhada por Sequeira, mas vemo-la mitigada no repartir da atuação dos apoios sociais um pouco por todo o lado nas grandes cidades.
Sucessivas políticas de desatenção ao interior de Portugal deixaram uma larga franja do país fragilizado e sem perspetivas. Uma boa rede viária, paradoxalmente conduziu o país para uma realidade em que as populações se conduziram para as grandes cidades do litoral. Os Censos de 2011, até agora os mais recentes, apontavam (e a sua leitura alertava) para o facto de a área Metropolitana de Lisboa contar com 2,8 milhões de habitantes, o que representa aproximadamente 27% da população portuguesa. A Área Metropolitana do Porto acolhia 18% dos habitantes do país. Há dados que indicam terem estes números entretanto aumentado.
Vem isto a propósito das eleições autárquicas que se aproximam. A eleição de candidatos de esquerda às autarquias constitui um desiderato que não pode ser deixado de concretizar por um campo político que pretende alcançar mais justiça social. Se pode vir a ser importante a atuação de mais autarcas no interior do país que trabalhem a favor da equidade territorial, a enorme concentração de população nas grandes áreas metropolitanas requer também que não falhe a esquerda nas próximas eleições locais.
Não serão apenas os desafios da pobreza a enfrentar, o que demanda, além do grande esforço da campanha eleitoral, uma demonstração ao eleitorado de domínio das questões, conhecimentos e habilidade política. Se os grupos sociais mais desfavorecidos necessitam de atendimento imediato às suas carências, há nas zonas metropolitanas questões que se demonstram transversalmente opressoras, como a ambiental. A poluição sonora e do ar têm de ser minimizadas e interrompido o impacto negativo que causam na qualidade de vida das pessoas. O avanço do edificado tem de ser racionalizado para não ter efeitos negativos no ecossistema, bem como têm de ser mantidos ou criados espaços verdes de proximidade. O urbanismo e o espaço público têm de ser repensados desde já para se garantir o fruir das cidades pelas pessoas, designadamente através de manifestações culturais. A impressão do turismo na vida das pessoas (designadamente pelo aumento dos custos da habitação), no ambiente e no Património, tem de ser ponderada. É cauteloso ter o turismo como principal forma de sobrevivência de uma cidade ou região? A pandemia até agora mostrou efeitos negativos por se esperar uma infindável fonte de receitas na indústria do turismo.
Numa agenda espessa, há uma página que importa abrir. As pessoas almejam cidades mais justas, com uma inter-relação e mobilidade entre os diversos pontos das áreas metropolitanas devidamente humanizadas. O associativismo intermunicipal tem de ser encarado para o aproveitamento de recursos.
Se quem vai para o escrutínio eleitoral autárquico tem, portanto, um desafio de grande responsabilidade, por outro lado parte sem uma orientação estratégica de esquerda que não foi devidamente estruturada e maturada. Pouco debate houve sobre o assunto, quase nenhum pensamento se produziu. Vai-se para esta campanha eleitoral sem o trabalho de casa feito e o eleitorado irá sentir isso. A esquerda tem de ganhar não apenas posições no centro do poder e passar a merecer a total confiança do eleitorado, numa proximidade política, solidária e pragmática com as pessoas. O futuro começa sempre agora.
* Alberto Guimarães
