Da importância dos funcionários no BE *

Aproximamo-nos com meio ano de atraso da Convenção Nacional do Bloco de Esquerda. Será, portanto, oportuno retomar uma discussão que, estando sempre em cima da mesa, precisa, em meu entender, de ser aprofundada. Trata-se do estatuto dos funcionários.

O Bloco de Esquerda surgiu para “Começar de Novo” como um agente transformador, «está dentro e corre por fora», e a sua vocação é a de não permitir que o necessário trabalho por dentro o faça perder a corrida por fora.

Trabalhando por dentro, o Bloco, precisa do seu aparelho de funcionários, da sua burocracia perigosamente, mas necessariamente, equivalente à dos partidos do sistema contra o qual nos batemos. Doutra forma seríamos incapazes de agir e de ter intervenção.

Nesta perspectiva a abordagem teórica da entidade funcionário, da entidade deputado,  da entidade dirigente, da entidade militante exige grande abertura  para questionar  práticas instaladas, exige fundamentalmente um grande esforço para, na corrida e na luta, encontrar as formas que assegurem os meios compatíveis com os fins que nos propomos alcançar.

Os fins em abstracto – só assim os conhecemos, hoje – exigem que os meios sejam em si próprios factores de transformação permanente quer da forma partido quer do como participar no movimento social que contém e determina a nossa função no seu seio.

Os fins não justificam os meios; foi a violação deste princípio nuclear que levou à liquidação de processos e projectos revolucionários e à transformação de sociedades que se proclamaram socialistas no seu contrário. Os meios determinam, condicionam, a realização genuína dos fins.

O carácter popular, anti-capitalista e eco-socialista** do nosso partido (partido-movimento) impõe-lhe uma abordagem revolucionária e, portanto, eminentemente democrática, descentralizada e participada (comandada) pela militância das suas bases intervindo na luta dos trabalhadores, na luta popular.

O eco-socialismo não se alcança espontaneamente ou porque o capitalismo “está na sua crise final”; ou porque as contradições decorrentes do desenvolvimento desigual na época do imperialismo e agora da globalização apontam para o seu fim; ou porque a ciência e a tecnologia fornecerão novos meios para novas formas de organização social; ou porque a compreensão geral das consequências da depredação da natureza pelo crescimento (“progresso”) capitalista levará a um sobressalto geral (global).

O eco-socialismo, parafraseando Karl Marx, decorre do movimento social real que vai superar o actual estado de coisas que hoje é marcado pelas condições acima referidas,num processo revolucionário em que os partidos eco-socialistas terão um papel – deverão ter – que contribua para o desenvolvimento do saber, do conhecimento, dos trabalhadores e para a sua unidade na luta.

Mas Karl Marx  alerta-nos: “A revolução não é apenas necessária por ser o único meio de derrotar a classe dominante, ela é-o também porque somente a revolução permitirá à classe que derruba a outra varrer toda a podridão do velho sistema que fica a escorrer, e tornar-se apta para fundar a sociedade em novas bases”. A podridão do velho sistema, o nosso, infiltra-se e insinua-se insidiosamente pelos mais inocentes e estreitos espaços.

A dinâmica interna no Bloco está obrigada a comprometer-se com o movimento social e com as exigências sociais e políticas dos trabalhadores, desde que apontou como seu objectivo político/organizativo fundamental, no presente, participar na formação de uma esquerda grande, de um grande partido dos trabalhadores.

Como as formas que vamos desenhando, delineando, construindo, têm contribuído e contribuirão para esse escopo, eis o que deve ser a nossa preocupação permanente. Um partido dos trabalhadores na sociedade capitalista apenas se justifica para contribuir para a liquidar.

Pela sua própria função e importância intrínseca, o corpo de funcionários tende a tornar-se parte e instrumento do aparelho do partido e, nessa qualidade, a ganhar a sua própria autonomia que é ao mesmo tempo a sua própria sujeição.

No cumprimento empenhado e entusiástico das tarefas que lhes são atribuídas, os funcionários desenvolvem insensível e, em princípio, involuntariamente, mecanismos de poder que se reproduzem e podem passar a ter um papel de travão ou distorção da dinâmica democrática genuína do partido.

Por outro lado, a sua aceitação generosa e assumida de uma forma de vida de dedicação ao partido, em que se insere a relação salarial e, portanto, se cria uma dependência não só funcional mas vital, tende a gerar insensivelmente uma disponibilidade objectiva para agir fundamentalmente como mensageiro político da direcção e não como militante político como qualquer outro com a diferença de poder preocupar-se quase exclusivamente com a intervenção política. Uma vantagem que pode transformar-se num enfraquecimento da sua capacidade crítica activa.

Como traçar então uma política para os funcionários que contribua para o reforço do carácter democrático e revolucionário do partido, que lhes assegure, objectivamente (é bom ter em conta que é neste campo que nos movemos) a expressão e expansão de toda a sua capacidade de entrega, de luta, de dedicação e criatividade, só possíveis pela manutenção do seu espírito crítico intacto – ou seja que não se sintam pressionados por outros factores para além dos deveres de qualquer militante acrescidos daqueles que livremente assumiu quando aceitou a importante e decisiva tarefa de ser funcionário?

A história antiga e recente dos partidos dos trabalhadores mostra que a resposta, parecendo sempre óbvia e natural – o funcionário é um militante como os outros com responsabilidades acrescidas quanto ao tempo despendido nas tarefas partidárias – é bem menos fácil do que parece.

As críticas que têm surgido, da parte de cada vez mais militantes incidem em dois pontos principais e, quanto a mim, cruciais:

O funcionário nacional aparentar-se-ia algumas vezes ao tipo controleiro, sobrepondo-se, com uma autoridade emprestada pelo papel de delegado da direcção, ao natural e democrático desenvolver da actividade política nas regiões ou núcleos, tornando-se instrumento do funcionamento de cima para baixo e não um estímulo e um agente da política descentralizada e de baixo para cima.

Ou seja, o funcionário passaria a ser instrumento de um poder objectivamente tendente à centralização, em vez de um agente posto ao serviço do partido para assegurar o cumprimento de tarefas e decisões que só o trabalho partidário a tempo inteiro pode permitir, reforçando a capacidade global do partido para a sua própria abertura, descentralização e democratização, ligação à massa e intervenção na luta com total iniciativa.

Por seu lado a relação contratualizada com o partido através da sua direcção aparentando-se a uma relação laboral não o é nem deve poder sê-lo.

Não o é porque a relação entre as duas partes é uma relação de índole totalmente diferente e até antagónica da relação que é gerida por um código em que juridicamente se entendem duas partes com interesses diferentes (administração pública) ou antagónicos, relação laboral entre patrão e empregado.

Não deve poder sê-lo porque isso seria a negação radical da política revolucionária.

No entanto essa contratualização é necessária («trabalhar por dentro») para assegurar os direitos dos funcionários enquanto trabalhadores dependentes de um salário; mas ao mesmo tempo essa contratualização nada significa perante a responsabilidade política de ambas as partes que são apenas uma quanto à política revolucionária que prosseguem.

Parece.me que a questão fulcral a resolver é esta:

Como assegurar que o funcionamento, a gestão e o controlo dos funcionários é exclusivamente de índole democrática de acordo com os princípios fundadores do partido

Como assegurar os direitos políticos intocáveis dos funcionários

Como resolver um eventual conflito “laboral” num campo e num entendimento! eminentemente políticos

Não me proponho avançar com respostas ou soluções concretas que espero saiam do debate.

Mas para mim uma coisa é certa:

No Bloco só deve haver funcionários políticos. Ou seja nenhum funcionário pode ser apenas funcionário «administrativo».

Os funcionários cuja actividade é regional/distrital devem ser escolhidos na e pela região. A hipótese de ratificação pela direcção nacional deve ser totalmente excluída pois corre-se o risco de entrar na categoria reaccionária da “confiança política”, arbitrária e discriminatória, instrumento de controlo não democrático e sobreposição do centralismo (como sabemos o “centralismo democrático” está teoricamente banido entre nós, mas sai pela porta e entra pela janela). A responsabilidade pelo salário deve ser da própria região/distrito de acordo com «protocolo» combinado com a direcção nacional para decidir a origem e a forma das verbas em jogo

Os funcionários nacionais são obviamente escolhidos pela direcção nacional. Na sua actividade nacional por orientação da direcção nacional, não poderão impor-se, sob qualquer argumento, às normas, formas de funcionamento ou decisões das direcções regionais/distritais . Os eventuais diferendos ou conflitos decorrentes serão dirimidos entre a direcção nacional e as direcções em causa. 

Fundamentalmente parece-me necessário encontrar um mecanismo democrático directo que esteja na base da escolha dos funcionários e funcionários: e esse mecanismo terá que ser, sem dúvida, um processo de escolha electivo com uma base «interessada».

Ou seja: funcionários nacionais seriam eleitos entre vários candidatos, se os houver, numa assembleia formada pelas direcções regionais e convocada pela direcção nacional. Os funcionários regionais eleitos em assembleia regional.

A questão fulcral: a eficácia na política revolucionária impõe sempre mais e mais a necessidade de tornar o funcionamento do partido mais e mais democrático, mais e mais transparente.

Ou seja, o “correr por fora” terá que se impor progressivamente ao “estar dentro”.

* Mário Tomé

Visão | Major Mário Tomé desabafa sobre o 25 de novembro

** Eco-socialismo, do ponto de vista teórico, é uma redundância. O socialismo como o comunismo entendem-se teoricamente como sociedades radicalmente ecologistas. Quer do ponto de vista filosófico quer do ponto de vista científico é isso que decorre do pensamento de Karl Marx que serve de suporte aos dois conceitos, a estas duas concepções de sociedade. Mas a actual situação e as barbaridades ambientais, ao nível do mais desenvolvido capitalismo,  feitas pelos países auto-intitulados de socialistas e comunistas, talvez com excepção de Cuba, justificam plenamente a utilização da  figura «eco-socialismo»               

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