O grave quadro pandémico que o país atravessa não podia deixar de condicionar as eleições presidenciais e constituir um dos temas centrais da campanha. Era impossível partir para este processo eleitoral sem fazer esta ponderação. As eleições realizaram-se na sequência de nove declarações de Estado de Emergência, uma situação de exceção constitucional nunca ocorrida, e num contexto de aprofundamento de uma crise sanitária com consequências críticas aos níveis económico e social. A crise é profunda e tende a aprofundar-se. Esta situação confronta o Estado com a urgência de políticas públicas extraordinárias, agravada pelos erros cometidos, a insuficiência dos meios disponibilizados e a dependência de uma UE em crise. Em 2020, Portugal teve o maior número de mortes desde há cem anos no rescaldo da gripe espanhola e a situação deteriorou-se rapidamente logo a partir do início deste ano. O aumento da mortalidade deve-se à covid-19, mas também a outras patologias para as quais os cuidados de saúde aos diversos níveis já não têm capacidade de resposta.
A crise foi o espectro mais presente na campanha, terá mesmo gerado medo social e veio expor com mais evidência as dificuldades com que a maioria dos trabalhadores/as está confrontada. O desespero de uma vida difícil, cheia de direitos consagrados, mas raramente concretizados, vem desde o tempo de governos anteriores, passou pela governação Passos/Portas/Troika e agora, sem que tenha havido significativa recuperação das perdas causadas pela austeridade, volta-se à perda de rendimentos, ao desemprego, à duplicação dos despedimentos coletivos, à fome, à crise da habitação, à precariedade laboral extrema e até à degradação dos serviços públicos de saúde que são obrigados a adiar milhares de consultas, tratamentos e cirurgias.
A reeleição do PR à primeira volta era esperada. Contava com o apoio dos partidos do chamado bloco central e com elevada popularidade, reforçada com a liderança da condução do combate à pandemia, consentida pelo Governo, e pelo sentimento de “unidade nacional” que contou com suporte da esquerda parlamentar. Tudo concorreu para que Marcelo tivesse sido reeleito com 60,78% dos votos, apesar dos erros que agora começam a ser evidentes na luta contra a pandemia, de o país estar com uma das maiores taxas de mortalidade da Europa e do Mundo e de o SNS ter entrado em rutura.
O facto mais marcante do posicionamento das várias forças políticas foi o PS ter desistido de apoiar uma candidatura da sua área política, na previsibilidade da vitória de Marcelo. Privilegiou o prolongamento do entendimento com o PR como garantia de estabilidade do seu governo minoritário até final da legislatura, num contexto de crise e de uma austeridade que se instala, apesar de não ser assumida. A aliança Marcelo/Costa, selada nestas presidenciais, exprime a ideia do consenso nacional para obrigar a esquerda a viabilizar essas políticas e a circunscrever as suas exigências ao quadro institucional. Os interesses do capital ficam salvaguardados.
Uma candidatura forte à esquerda que inscrevesse no confronto político uma alternativa a esta espécie de “centrão” que continua, na estabilidade, a meter dinheiro público na banca privada, a defender o défice e a dívida, a degradar os rendimentos dos trabalhadores e a promover a precariedade, deveria ter estado no centro de uma política anticapitalista nestas eleições. A ideia de que a pulverização de candidaturas beneficiaria uma mobilização mais acentuada de votos teria algum sentido caso a perspetiva fosse alcançar uma segunda volta. Porém, como a própria direção do BE declarou, e ficou demonstrado, esse não era um cenário credível. Ao contrário da dispersão, a concentração de votos beneficiaria o reforço de um polo alternativo ao “centrão” Marcelo/Costa/Rio e diminuiria a expressão de Marcelo e da extrema direita afastando-a da possibilidade de um eventual segundo lugar. As candidaturas apoiadas pelo BE e pelo PCP acabaram derrotadas e fragilizaram a esquerda, independentemente do mérito e da coragem de Marisa Matias e de João Ferreira. Ana Gomes, por si só, veio tornar evidente a fragilidade da esquerda orgânica do PS, mas também a possibilidade de uma alternativa mais à esquerda da atual direção do PS, com o mérito de ter impedido que a extrema-direita conseguisse o segundo lugar.
O BE, não obstante manter algumas reivindicações avançadas como a defesa do SNS público, de qualidade e universal, não foi oposição e adaptou-se ao consenso PR/Governo. Viabilizou orçamentos e propostas de Estado de Emergência de forma quase acrítica, em que os direitos laborais não foram assegurados, nem os despedimentos impedidos, nem a requisição dos meios privados de saúde garantida. Optou por gerir um caderno reivindicativo por vezes com elementos confrontacionais, mas tendo sempre como pano de fundo a recuperação de um acordo com o PS, falido logo no início da Legislatura, que já tinha demonstrado as suas limitações na campanha das legislativas de 2019 e que regressou como estratégia desta direção nas presidenciais 2021. Este foi um traço comum das três candidaturas à esquerda. Um traço que as diminuiu na capacidade de mobilização cidadã e das lutas dos trabalhadores, como as da TAP e da Galp que estão hoje no fulcro do confronto com o capital e o seu governo, assim como dos setores populares desiludidos onde germina revolta. Desta forma, colocaram-se na dependência do consenso PR/Governo, o que lhes retirou força alternativa para combater o medo e para afirmar um projeto de mudança.
A extrema direita explorou a fratura social que irrompeu com mais força na pandemia. Nestas eleições presidenciais encontrou palco de afirmação, ganhou centralidade no debate político e alcançou um resultado eleitoral com uma dimensão que a colocou em segundo lugar em vastas regiões do país, da área metropolitana de Lisboa ao interior do território. Puxou por sentimentos racistas e xenófobos, mas ganhou o espaço do descontentamento e da contestação a um sistema iniquo, de que faz parte, atravessado pela corrupção, privilégios e desigualdades, incapaz de dar resposta às necessidades das pessoas. Este tem de ser o ponto de partida para o combate à extrema direita que não pode ficar pela troca de ofensas verbais. O resultado eleitoral pressiona para a radicalização da direita.
No Bloco não foi possível fazer o debate sobre o quadro político e a forma de participação nas eleições presidenciais. Numa reunião da Mesa Nacional foi informado que a candidatura de Marisa Matias iria ser apresentada. Na reunião seguinte foi proposto o facto consumado – apoiar essa candidatura. O Bloco não foi envolvido na decisão, na continuidade da prática centralista e fechada da atual direção. E é significativo que uma dirigente atire para a candidata a responsabilidade da derrota ao escrever num jornal que a sondagem de domingo “atribui ao Bloco o dobro dos votos que teve a candidata apoiada pelo partido.” Outro dirigente escreve que a explicação para “os maus resultados de domingo” está em Marcelo ter ido “muito além do seu espaço político”. Outro refere que o problema foi tratar-se de “uma reeleição” e da singularidade da situação de pandemia. Não era sabido e evidente que isso iria acontecer? Não foi tido em conta? Apesar disso optou-se por expor a candidata e o Bloco a uma vincada derrota? Não tinha sido possível debater e envolver todo o partido numa decisão sobre esta matéria da maior importância?
Neste momento de balanço, o Bloco precisa de saber qual a resposta política da direção sobre a perda de 300 mil votos da candidatura do Bloco e a concentração de votos de contestação ao sistema na candidatura da extrema-direita. Procurar desvalorizar os resultados e a derrota à esquerda, dizer que o problema está na especificidade da eleição presidencial como foi dito para a imprensa, é uma fuga desesperada às responsabilidades. As presidenciais de 2016 também não tiveram a sua especificidade?
A direção do Bloco prepara-se para desvalorizar as perdas eleitorais, tal como o fez em 2019 nas Legislativas, recusando-se a retirar conclusões sobre a necessidade de uma reorientação na linha política que se confunde, cada vez mais, com a social democracia e se acomoda nas disputas institucionais que estão a descaracterizar o Bloco e a conduzi-lo à perda de influência política. A tendência para uma possível reconfiguração da direita não pode ter como contraponto uma crescente dependência da esquerda em relação ao PS. A esquerda tem a responsabilidade de reconquistar um forte polo de influência, com autonomia e projeto próprio. O Bloco precisa urgentemente de construir unidade em torno do debate plural, democrático e participado. Precisa de assumir o seu destino de força socialista, ligada aos combates pelos valores das classes trabalhadoras e pela transformação social. Como é dito no manifesto “Começar de Novo”, algo tem de ser feito e este é um desses momentos, onde é necessário ver mais longe do que as ilusões e aparências recomendariam.
Janeiro.2021