Há uns dias fomos confrontados com uma reportagem da TVI em que se punha a nu uma realidade que pareceria ser retirada de um filme de terror. Foi a segunda vez que esta estação televisiva se deslocou ao Hospital Conde de Ferreira, uma unidade de saúde mental da cidade do Porto, depois de terem surgido denúncias de maus-tratos aos doentes ali internados. A primeira vez foi há dois anos. Entretanto, o caso está a ser investigado pelo Ministério Público, sendo que a ASAE já tinha fechado uma enfermaria por falta de condições.
Mas a indignidade e o desamparo continuam a reinar naquele hospital psiquiátrico que deveria ser exemplo vivo de acolhimento e tratamento de doenças do foro mental. Em vez disso encontrámos um local degradado, onde as baratas e ratos se passeiam, onde as casas de banho se encontram inundadas e as paredes descamadas.
Os doentes deambulam por ali entregues à sua sorte. Diz-se que saem do edifício porque aquilo não é prisão, mas é um cárcere a lembrar os tempos da ditadura o local onde alguns dos “mal comportados” são colocados em isolamento. Basta olhar: um colchão no chão, uma manta, um balde ou nem isso, as necessidades fazem-se em qualquer lugar, uma abertura por onde são vigiados. Permanecem nesta cela durante dias, até que os medicamentos actuem e os acalmem. É uma espécie de castigo, o limbo onde se deixa a apodrecer esta gente em tudo igual a nós.
Os que têm autonomia saem para pedir cigarros ou arranjar droga e voltam para dentro a adormecer os dias. As actividades são diminutas, o tempo arrasta-se.
Os acamados permanecem em enxergas onde a roupa não se muda com regularidade, esquálidos, sujos de fezes, cheios de escaras no corpo, úlceras de pressão onde cabem punhos. Há um rasto de abandono pelos corredores, pelas escadas, corpos jazem no chão embrulhados em mantas, abandonados a si próprios.
A insensibilidade e desfaçatez com que os responsáveis da unidade hospitalar respondem aos jornalistas incomoda pelo cinismo.
Esta unidade hospitalar é propriedade da Santa Casa da Misericórdia com protocolos com vários hospitais. O Estado tem uma comparticipação considerável que deveria reverter esta situação de degradação constante. Ainda assim, a justificação que se apresenta é de falta de meios materiais e humanos. Dizem que não há verbas para obras que possam contribuir para um espaço digno, nem de profissionais que possam acompanhar estes doentes.
É de gente que falámos. Pessoas como nós sobre quem se abateu uma patologia ainda pouco estudada.
Lembro as vozes que se ergueram aquando do abate de centenas de javalis e veados. A indignação que varreu o país, o envolvimento das entidades ligadas ao assunto, a resposta aflita dos responsáveis governamentais.
Foi justo que assim fosse.
Neste caso, houve apenas um leve estremecimento, um fechar de olhos ao que incomoda. Nenhum cargo foi posto em causa, ninguém assumiu a responsabilidade. Foi instaurado um inquérito que, como é hábito entre nós, se eternizará e deixará, como sempre, a culpa morrer solteira.
Vivemos num estado capitalista em que tudo o que não gera lucros é desvalorizado. Estes cidadãos são excluídos por uma sociedade hipócrita que varre para debaixo do tapete o que é menos perfeito, menos belo, menos são. De todos os enfermos, os mentais são os mais ignorados. Talvez pelos medos ancestrais da loucura que em tempos medievais era ligada ao mal, à bruxaria. Mas vivemos em pleno século XXI. Numa era de grandes avanços a nível científico era de esperar que estas situações fossem erradicadas. Mas coabitamos dentro de um sistema onde subsiste uma economia da exclusão e da desigualdade social. Os mais frágeis não merecem da parte do Estado a atenção e amparo que lhes são devidos.
Maria Jorgete Teixeira