A (des)memória do tempo e a disputa política – por João Madeira*

Em tempos recentes têm-se multiplicado os espaços de evocação biográfica e memorialística de gerações de antifascistas, que com generosidade e voluntarismo enfrentaram a perseguição política, a prisão e a tortura, sacrificando empregos, saúde, relações familiares e inclusivamente a própria vida. São experiências vividas na primeira pessoa que é preciso valorizar e publicitar, em nome da nossa memória colectiva, não só para que não se esqueça, mas também para que não se repita.

E isso é particularmente importante nestes tempos de desmemória inculcada por aqueles para quem os valores das ditaduras e dos fascismos, absolutamente repugnantes aos nossos olhos e numa perspectiva civilizacional, reemergem de modo despudorado e ignóbil.  

Sobre a voracidade da globalização capitalista e sobre a correlacionada crise das democracias liberais, vêm, populistas de direita, de inspiração fascista ou fascizante, cavalgar a desprotecção social extensiva que resulta do desmantelamento das funções sociais do Estado, as frustrações por expectativas goradas que afectam multidões de deserdados, os medos enraizados, racismos estruturais, preconceitos de género.

A ofensiva política e ideológica da extrema-direita espalha-se como veneno pela Europa e pelo mundo. Trump, Bolsonaro, Órban e os seus amigos nos países onde o chamado “socialismo real” implodiu; Le Pen ou Salvini, os herdeiros assanhados do franquismo espanhol dão, entre outros, a dimensão dessa escalada, com o obscuro Steve Bannon a urdir a teia de uma “internacional fascista”.

No país, ainda que sem base de massas, mas explorando opiniões difusas, designadamente nas redes sociais, potenciadas através de uma rede concertada de notícias falsas, o Chega procura ganhar terreno, estimulando inclusivamente processos de recomposição da extrema-direita, envolvendo ressabiadas derivas na direita do sistema partidário tradicional, alianças com o fundamentalismo evangélico e com sectores mais vorazes da especulação imobiliária, disputando o mesmo lodaçal com a nova direcção do CDS ou com os despojos do Aliança, bolsando seja a desprezível ideia do cerco sanitários aos ciganos, a pirotecnia em torno do  “marxismo cultural” ou os descarados elogios a Bolsonaro.

Não podemos ser de todo indiferentes a esta escalada, para mais perante a extensão e a profundidade da crise económica e social trazida na enxurrada da crise pandémica, que se vai agigantar nos próximos meses, pasto para potencial crescimento da extrema direita. Veja-se a este propósito, a desavergonhada propaganda em torno da mais recente injecção de dinheiros públicos no Novo Banco, procurando apropriar-se do que é uma medida governativa de apoio aos interesses da finança internacional.

Do que hoje precisamos não é de arranjos minimalistas em torno do orçamento suplementar ou da condicionante “generosidade” europeia. O dinheiro existe, são precisas prioridades claramente assumidas no sentido da sua aplicação, através de políticas públicas ousadas e robustas que assegurem trabalho e condições de vida dignos.

Proibição dos despedimentos, salários pagos a 100%, rendimentos em circunstância alguma abaixo do salário mínimo nacional, fortalecimento do serviço nacional de saúde, da escola pública e dos mecanismos de protecção social, apoio aos idosos, reformas e pensões decentes, são, simultaneamente, medidas de apoio aos deserdados da crise e medidas contra o crescimento da direita e do populismo de extrema-direita.

O nosso compromisso só pode ser com a resolução dos problemas concretos dos trabalhadores e do povo, sem perder de vista que a raiz mais profunda está no próprio capitalismo.

Hoje, a par da luta unida pelas grandes reivindicações em torno da defesa dos trabalhadores e do povo pobre, é preciso levantar a disputa política e ideológica contra a (des)memória histórica e civilizacional, contra a propaganda reaccionária e fascizante, pelos valores da liberdade, democracia e do socialismo.

* João Madeira, aderente do Bloco de Esquerda, Investigador do Instituto de História Contemporânea, professor.

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