Vivemos numa sociedade que valoriza o que é material, a beleza e perfeição dos corpos, as marcas exteriores de riqueza. Os mais velhos, os mais fragilizados, de rostos rugosos, com limitações físicas ou de memória, não têm lugar aí. São descartados por esta sociedade neo-liberal, adversa aos valores da solidariedade e da justiça social, cada vez mais ligada ao sucesso vertiginoso e ao lucro.
É uma sociedade que acena aos jovens com a fama e o êxito fácil em programas de talentos ou em reality shows de duvidosos valores. As histórias reais da gente comum, da coragem que é precisa para encarar a vida tantas vezes dura, da luta pela sobrevivência, não atraem as luzes da ribalta televisiva ou da imprensa escrita.
Tão pouco se valoriza a geração que atravessando dois séculos, resistiu ao fascismo e é agora a única com memórias vivas desses tempos de treva.
São gerações nascidas na primeira metade do século XX e depois, nos anos 50, 60, antes da alvorada de Abril, contribuintes de uma história colectiva, soldados de uma guerra injusta, resistentes a uma ditadura feroz, militantes pela Liberdade de que hoje todos usufruem, imigrantes na França, Suíça, Brasil ou Venezuela. Gente que levou toda uma vida a labutar e a contribuir para o avanço e progresso em várias áreas acaba assim por se ver reduzida a números, apenas tendo relevo nos quadros, gráficos e estatísticas.
É sobre estas gerações que se assestam olhares, olhares oblíquos mascarados de preocupação e cuidado, mas que evidenciam uma visão primária de desrespeito pela individualidade de cada um. Pouco falta para que confinem os mais idosos a uma invisibilidade total, arredados da família e amigos, marcados por um estigma na testa tal como se fazia há séculos com os leprosos.
Ser velho não significa automaticamente ser inválido, incapaz ou desprovido de raciocínio ou valor. Haja dignidade e decoro!
Esta mentalidade vem de uma sociedade que vota os seus mais velhos a total desprezo, que lhes desconhece o papel de transmissores de testemunhos históricos, culturais e políticos, os encafua em lares sem o mínimo de condições, os esquece nos hospitais, os afasta da sua vida, dos afectos e conforto da família. Mas não é só de responsabilidade individual e familiar que falo, é principalmente do poder político. As famílias mais desfavorecidas, em que os filhos trabalham e têm de se organizar e enfrentar os desafios do dia: horas em transportes sobre-lotados, empregos precários e mal pagos aguentando as arbitrariedades dos patrões, o levar os filhos à escola ou creche, as compras e tarefas domésticas, que disponibilidade têm de tomar conta dos mais velhos, sem que lhes sejam dadas contrapartidas para isso? E os que nem sequer têm trabalho ou este existe de uma forma intermitente, que não têm habitações condignas, nem forma de sobreviver de uma maneira digna?
O Estado não confere às famílias mecanismos de ajuda, fecha os olhos à abertura de lares ilegais cujos proprietários apenas têm em mente o lucro a menores custos.
Em relação ao COVID-19, segundo a DGS, cerca de 305 dos óbitos ocorrem nos lares. Não houve o cuidado e a vontade de proteger os mais velhos. Esta crise sanitária veio destapar uma realidade de que todos sabiam mas fingiam não ver: 3.500 instituições ilegais, 35.000 idosos neste contexto.
Mas nesta situação epidémica muito está ainda por descobrir. Se é certo que a doença pode ter consequências mais graves nos idosos, também é certo que não atinge todos os que se encontram nesta faixa etária por igual. Há uma percentagem por quem o vírus passa sem deixar sequer sintomas. Por isso não farão nunca sentido medidas de restrição discriminatórias que têm como base, não a situação de saúde de cada um, mas simplesmente a idade que têm.
Da parte do Estado exigem-se medidas mais musculadas e um olhar mais atento. Não é possível viver com dignidade com pensões que mal dão para arcar com as despesas correntes de alimentação, água, luz e medicamentos. Há que fornecer às famílias mais vulneráveis um apoio social efectivo, a nível da prestação de cuidados domiciliários, de subsídios ao nível da medicação, de apoios aos cuidadores informais .
Exige-se que se faça um rasteio a nível dos lares existentes e se seja rigoroso na denúncia e resolução dos casos irregulares. Que se faça um levantamento, junto das entidades locais, dos idosos que vivem sozinhos e isolados e, nesta situação de calamidade, que exista uma rede bem oleada de oferta de apoio psicológico, de acompanhamento, de prestação de pequenos cuidados como as compras, a higiene pessoal ou outros serviços, de fornecimento de máscaras e outros equipamentos, que se ultrapasse a situação de extrema solidão em que estas pessoas se encontram perante o confinamento que existe.
E que se estude a forma de levar aos mais velhos o conforto dos entes queridos porque de nada serve alongar a vida se a mesma se afundar num deserto de préstimo e afecto.
Imagem de destaque: Lâmpada Centenária – a lâmpada incandescente mais duradoura do mundo, a funcionar perfeitamente desde 1901. É mantida pelo Corpo de Bombeiros de Livermore-Pleasanton, na Califórnia, EUA.
*Artigo publicado originalmente em Esquerda.net