Da sobreprodução teórica à subprodução estratégica da esquerda

Desde a crise financeira de 2008 que uma profusão infinita de livros e filmes, de planos e manifestos à indignação têm sido produzidos para, por um lado, explicar os meandros do sistema financeiro actual, de como ele opera, de como as classes sociais e as relações de trabalho se recompõem e, por outro, procurando encontrar, conceptualmente, uma saída para a situação em que nos encontramos.

Digo conceptualmente porque, entre a configuração teórica de uma saída nacional da união económica e monetária ou de uma reestruturação total da União Europeia, no sentido de uma “Europa dos povos”, e a sua efectivação prática — isto é, as condições materiais para que uma ou outra qualquer outra solução se encontre —, mantém-se um vazio sem ponte nesse espaço que as medeia, que é onde emerge a política no sentido pleno do termo e a estratégia que permita franquear essas duas margens.

Li recentemente dois textos que analisam de formas mais ou menos profunda a situação actual da economia mundial em função dos efeitos da crise epidemiológica actual e dos seus efeitos sociais. E, curiosamente, os dois textos que tenho mais presentes agora mesmo terminam mais ou menos da mesma forma: após uma longa e complexa explicação da situação actual, no último parágrafo, quando se toca o ponto da tradução política, em termos estratégicos — de como deverá ser levada a cabo uma acção política de esquerda—, o que fica é aquele amargo de boca de quando do que leio não encontro nada que vá além de um “é preciso que algo aconteça” mas não sabemos o que fazer para que isso se dê.

A minha convicção é que há uma forma de fazer política que se esgota porque aposta na capacidade de influenciar os grupos sociais que já normalmente participam na acção política ou que pelo menos votam, e que oscilando entre o voto de protesto ou o ideológico, não tem mudado assim tanto e que, quando muda, dá-se mais uma fragmentação ou crise nos restantes partidos. Contudo, quando alguém ou um grupo de eleitores deixa de votar num partido (imaginemos, há uns anos, um Pasok, depois um PSOE ou um PSF) e passa a votar num outro sem ter mudado propriamente a sua consciência política, este novo partido terá de albergar estes novos eleitores com promessas impossíveis de cumprir para, ao mesmo tempo, satisfazer grupos sociais heterogéneos que têm perspectivas e interesses diferentes.

Outra maneira de fazer política passará por procurar formas de refazer partidos ou movimentos de massas num processo que trate de integrar democraticamente as próprias massas no processo de elaboração, de protagonismo e de acção política, de maneira a que as estruturas mediáticas e institucionais dos mesmos represente realmente grupos sociais cada vez mais amplos. O que deverá ser específico à esquerda é a sua ligação estrutural e orgânica às lutas sociais. Nesse sentido, é importante não pensar a luta social como um fenómeno que surge de forma mais ou menos espontânea ou inorgânica na sociedade, tendo os partidos de esquerda que dar uma resposta institucional ao que esta exige. A luta política e institucional é somente um dos flancos da luta pela hegemonia, isto é, pelo poder e pela transformação social.

Concluindo, creio que as hesitações e ausências no debate estratégico deve-se a um impasse cristalizado entre o verão e o outono de 2015, na Grécia, no governo do Syriza, com o seu plano fracassado de forçar um acordo e que teve como momento máximo e final da estratégia o referendo grego. E em Portugal, no acordo entre o PS, o BE e o PCP-Verdes. O ponto comum entre a Grécia e Portugal é a estratégia adoptada pela esquerda,  conduzida, essencialmente, no plano institucional, tendo o referendo grego sido o mecanismo de confronto mais extremo desse conflito.

No filme de Costas Gravas que ficcionaliza um dos livros de Varoufakis há um momento em que, dentro de um carro, Varoufakis e Tsipras falam sobre a multidão que na rua os apoia. Perante o entusiasmo das massas que cercam o carro e o medo de como o seu entusiasmo de hoje se pode transformar em ira ou desespero amanhã, o que é verdadeiramente significativo é o que as massas simbolizam desde o momento em que estas começam a ser protagonistas da sua própria história. Não tendo as massas outro poder, nem económico, nem mediático, o único que poderá ter é o do número, o de ser composto por aqueles que quer que tenham voz e poder para mudar o mundo.

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