Saído da Escola Preparatória Manuel da Maia, em Campo de Ourique, depois de ter frequentado a Escola do Vale Escuro, ao Alto de S. João, e a Escola Primária Nr. 13, às Amoreiras, tocou-me, por proximidade à nova casa dos meus pais ficar colocado no Liceu Padre António Vieira.
Aí chegado, teria de 12 para 13 anos …… ano lectivo de 1972/73, deparo-me com uma nova realidade escolar.
As instalações eram bonitas, um projecto do arquitecto Ruy Jervis d’Athouguia inaugurado em 1965. Contrariamente à escola preparatória anterior, esta tinha muita luz e grandes aberturas vidradas, e umas sebes muito bem ajardinadas que separavam o espaço escolar do espaço exterior. Para o tradicional conceito arquitectónico do Estado Novo, era uma evidente rotura, sei-o hoje, mas na época era mais luz, mais ar, mais sol e mais céu….
Havia uma grande diferença, que a principio não entendia, nem questionava…..tínhamos reitor e vice-reitor. Era mesmo diferente dos directores escolares anteriores….
Por obrigação familiar, tinha estado, há pouco tempo atrás, no que hoje sei que se chamava, “Cais da Rocha de Conde de Óbidos” a despedir-me de primos que iam “partir para a guerra”……a emoção foi muito grande e algo agitada, na despedida. E eu não entendia porquê, era tudo tão estranho nas pessoas crescidas….e algo incomodativo…..”que coisa!”, pensei….
Perto do Liceu, nas paredes de alguns locais, havia inscrições estranhas que eu não entendia….….
Certo dia, no Liceu, no portão de entrada, alguém, um jovem, mais velho, coloca-me nas mãos, num movimento brusco, um molho de papeis para eu meter por baixo da camisola e “entregar lá dentro à malta”….como nem tive tempo para me pronunciar sobre o que fosse, lá estava eu a levar para dentro o que nem sabia bem o que era……. entreguei a quem conhecia e outros papeis, a conselho, atirei para o ar, para melhor se espalharem. Vi, depois, que outros tinham sido atirados do último piso da rampa, que era só para os professores, mas que algum aluno calcorreou rapidamente para o acto, e que se espraiavam pelo ar até serem agarrados ou caírem no chão. Não achei graça à concorrência, e ainda por cima muito mais eficaz…..eram contra a “guerra colonial” por “uma escola democrática num Portugal democrático”. Tudo novidades para mim.
Já não sei exactamente a partir de que altura do ano surgiu, mas ainda hoje guardo com respeito e admiração a imagem de um professor de fato, camisola de gola alta, tudo em tons cinzentos, e cabelo muito bem penteado, para o grande, “por cima das orelhas” como diria o meu pai na sua visão militarista da vida e dos costumes.
Ele tinha uma voz que soava bem, dominava muito bem tudo o que dizia e fazia sentido. Hoje diríamos que tinha carisma.
Dava a disciplina de “Religião e Moral”, era padre e falava-nos da vida.
Da vida de todos os dias e dos seus problemas. Gostava de o ouvir. Eu tinha 12/13 anos e algumas coisas começavam a “tomar forma”, do que ouvia. Do alto do estrado, ele falava para 30, 40 alunos, coisa que não era fácil.
Certo dia explicou-nos que havia muita informação errada a circular. (como podem ver, a situação de hoje não é inédita, têm uma longa tradição, as “fakes”) Dizia, explicava, que muitos actos recentes de bombas/petardos que tinham rebentado no centro de Lisboa não era para fazer mal a ninguém, mas para chamar a atenção das pessoas e espalhar papeis com informações importantes, da pobreza, da guerra, da injustiça. Eu ía bebendo tudo, com os meus colegas, ávidos de informação que fosse diferente e que nos despertasse a curiosidade.
Eu notava convicção, coragem, era contagiante a sua postura audaz.
Certo dia, já nem sei em que contexto, falou-se da guerra em África, da nossa guerra, da guerra em geral e como não podia deixar de ser, da paz também.
Alguns dos papéis que circulavam pelo Liceu tinham emblemas e símbolos, como imaginam.
Certo dia puxei, em casa, com os meus pais, o assunto da guerra, que tinha lido ou ouvido umas coisas por aí e sobre protestos nas ruas, contra a mesma. Quiseram saber de onde vinha essa narrativa, que sabiam não ser minha, de origem, e fiquei a saber que tinha um professor “comunista” que deveria ser corrido do ensino, que era um perigo. Uma página de um caderno, não sei de que disciplina, foi arrancada, só porque tinha uma foice e um martelo, desenhados numa aula, copiado do que estava num dos papeis que tinha apanhado do chão, no Liceu.
No início de uma aula de Religião e Moral, que era sempre um momento crítico de agitação, como todas, ao inicio dos 50 minutos, houve um colega, um dos mais “engraçadinhos”, que se foi a outro, mais caladito, e deu-lhe “um calduço” com alguma violência. O professor que estava de costas, virou-se rapidamente, não conseguindo, no entanto, ver tudo. Exigiu com plenos pulmões que o colega que tinha feito aquilo se apresentasse junto a ele no estrado. Demorou algum tempo, é certo, mas lá foi ter com ele, olhos no chão. A pergunta não se fez esperar, se tinha consciência da agressão perpetrada contra um seu colega. Muito indignado, lá terá aplicado algum correctivo. Hoje os conceitos e as práticas pedagógicas são outras, mas à distância de 45 anos, era assim. A defesa dos mais fracos, era a sua prática, mesmo se isso se aplicava numa sala de aulas, e a alunos. Citava algumas vezes, eu não sabia de quem, que “mais valia morrer de pé que viver toda a vida de joelhos”, quando se tratava de enfrentar as injustiças e defender os valores da paz e da concórdia entre os povos.
Ele era especial, tinha carisma, autoridade e ao mesmo tempo transmitia-nos inconformismo, sentido crítico, hábitos de pensamento sobre o mundo. entendi-o anos mais tarde.
O 25 de Abril não tardou muito e as mentes foram despertando, dessas “sementes” colocadas no “Inverno” que emergem na Primavera.
Estava com outro amigo e professor, em 1976, Padre Alberto Neto, quando nos chegou a notícia do seu assassinato. Ficámos devastados. Alguém tinha decidido, “à bomba”, que ele não podia continuar com a sua mensagem de “mundo novo” junto da juventude. Os “vendilhões do templo”, assassinos e criminosos sem pudor, desde que isso sirva aos seus interesses, tinham actuado. Foi mais um crime da chamada “Rede Bombista”, da extrema direita.
Max incomodava, porque falava a verdade, porque “vendia”, como se dirá hoje, um mundo novo, e esperança no ser humano. E isso é sempre muito perigoso para quem quer manter privilégios e benesses intemporais.
A sua independência de pensamento não o impediu de aceitar uma candidatura partidária de esquerda, como independente, numa terra de caciques, e isso foi a gota de água. Morreu jovem, este filho de Almendra, no interior duriense, freguesia de Vila Nova de Foz Côa, que muitas memórias também por lá deixou da sua juventude, antes da ida para o Seminário e para a emigração em França.
Perdi um amigo, mas ganhei um referente para a vida em dignidade, determinação e convicção.
Até Sempre, “Padre Max”, que era como o tratávamos.
Tínhamos 12 anos, e o mundo por diante…
“Admiro os resistentes, os que fizeram do verbo “resistir” carne, suor, sangue, e demonstraram sem espaventos que é possível viver, mas viver de pé, mesmo nos piores momentos” dizia Luís Sepúlveda. Assim era Maximino Barbosa de Sousa.