O dinheiro que falta para pagar a crise

Regularmente, as grandes corporações mundiais cumprem um sinistro ritual. Têm diversas designações, mas comumente designa-se por “Capital Markets Day”. No primeiro trimestre do ano, reunidas com representantes da banca e dos fundos de investimento, as direcções executivas das empresas anunciam os seus planos e orçamentos para esse e para os próximos anos.

A parte mais sinistra desse encontro prende-se exactamente com a declaração da intenção de distribuição de dividendos(1)para os accionistas. Para se tornarem mais «apetecíveis» para o potencial investidor e cativarem investimento em vez de outras empresas concorrentes, as empresas anunciam retornos em valor ou percentagem de valor das acções. Os números comunicados são normalmente incríveis, e muito acima dos números que conhecemos da economia real (inflação, taxas de juros, crescimento económico entre outros). Nas economias do Euro, com taxas de crescimento económico residuais, a promessa de dividendos anuais de 5-10% é comum.

É nesse ritual que se consagra a essência do capitalismo financeiro das últimas décadas. O contrato social no qual o director executivo se compromete a maximizar o lucro para o investidor. E é na persecução desse objectivo, desse retorno “mágico” prometido, que se decidirão quantas deslocalizações, quantos despedimentos e quantas perdas salariais e de direitos laborais, ou que sectores do Estado serão enfraquecidos ou depredados.

Enquanto os salários dos trabalhadores, as taxas de juro, a inflação, a produção e o consumo terão crescimentos diminutos (quando não negativos), as aplicações de capitais terão os tais dividendos hiperbólicos.  E no mundo do capital financeiro global, é o acumular ano após ano desse diferencial entre o mundo da economia real e o da fantasia dos capitais que gera as bolhas especulativas e as crises financeiras.

É assim bizarro que, com tanto capital acumulado, os estados tenham necessidade se endividarem cada vez mais para trazer “dinheiro fresco” e manter a economia real a funcionar. Neste período de cada vez mais frequentes crises financeiras e económicas globais é preciso ser claro: Não existe falta de capital no mundo. É necessário ir buscá-lo onde ele se acumula: nas grandes fortunas, nos offshores, na banca e nos fundos de investimento e nos seus retornos milionários(2). Bem como na miríade de empresas subsidiárias fictícias das grandes corporações por onde se escapam ao pagamento de impostos.

Perante a mais grave crise social e económica das últimas décadas, com contínuos lay-off e despedimentos de trabalhadores, bem como de cortes de investimentos, procure @ leitor@ por informação acerca de cancelamento da distribuição de dividendos aos accionistas por parte das grandes empresas, ou de cortes significativos nos juros bancários.

Não encontra, pois não? Estranho, dir-se-ia que nesta crise há afinal quem muito lucre. Numa rápida pesquisa na internet pode consultar essa informação nas páginas das empresas. Sugiro que comece pelas multinacionais que estão a despedir em Portugal.

Neste contexto assistimos a pedidos de mutualização europeia de dívida (chame-se coronabonds ou eurobonds). A dívida pública e os seus limites são nesta União Europeia um mecanismo de controle que os estados da Europa central têm sobre os estados periféricos. Uma “solução” que proponha a criação de mais dívida para os Estados para o “alivio da economia real” é, à luz do acima exposto, uma falácia.

E se em vez de ajudar a cavar o buraco cada vez mais fundo da dívida pública, a esquerda for em busca de verdadeiras soluções, como renegociar  a dívida pública actual e procurar o dinheiro onde ele está?

Notas:

(1) Dividendos são uma parcela do lucro apurado por uma sociedade anónima, distribuída aos acionistas por ocasião do encerramento do exercício social. Fonte: Wikipedia.

(2) Embora de pequena dimensão no panorama internacional, o caso mais conhecido em Portugal talvez seja o dos CTT. Sob a ordem de um fundo de investimento, a gestão delibera a entrega de largas somas em dividendos, resultando num enorme desinvestimento na empresa e pondo em causa não só seu normal funcionamento bem como o seu futuro.

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