Com a impaciência dos condenados, que cumprida a pena anseiam pela liberdade, a Itália aguarda por estes dias a saída da pandemia.
Itália inteira. Dor, drama, pavor. Europa. A exclusão dos sem-abrigo transporta a fome. No velho continente, a Lombardia no epicentro do veneno.
Médicos trágicos, sem norte, decidem como deusas parcas a morte e a vida.
Pelas ruas desertas de Milão desfilaram e desfilam caixões sem funeral, sem uma última palavra de adeus ou agradecimento, sem parentes sombrios a chorar a morte.
Essas ruas conheceram já outros dias com muita gente a pisar-lhes o chão. Conheceram dias gloriosos e dias de vergonha, ensombrados de mal.
Foi em Milão que nasceu o fascismo italiano. As ruas agora desertas, coagidas de solidão, assistiram a caçadas hediondas, assaltos a sedes operárias, à destruição de jornais panfletários que ousavam querer dias melhores; mas também conheceram a audácia da libertação e o passo manifestante, cadenciado, de luta, a exigir outra vida.
As ruas, agora em silêncio, ouviram as gargantas abertas, escancaradas, a gritar, cantar, fazer eco de palavras de ordem, apelando a greves, exigindo liberdades. A construir outro mundo, eternamente em construção.
E também assistiram a espectáculos, artistas magníficos a partilharem música como quem partilha pão; as praças já acolheram teatros, e, por entre mimos estáticos, passaram multidões no entardecer prolongado do Verão. Era a vida a passear-se.
Sob o olhar gótico do Duomo, grupos de turistas fotografaram cada pedra, cada estátua, cada recanto, em memórias sucessivas.
Capital da moda e do design, ainda há dias, Milão assoberbava-se de indústrias, vestindo-se de costureiros divinos e inacessíveis.
Ainda há dias.
A tragédia invadiu agora praças e bairros. O centro histórico está lá, mas parece abandonado, ferido, desolado. Não só em Milão, mas em toda a bota italiana.
Ainda que haja cantoria em alguns bairros, a Itália sempre foi cantora, ainda que um ou outro gesto de solidariedade ou afecto ou bizarria nos chegue através de sucessivas transmissões televisivas, como que a tentar minorar o desalento, o que se vive hoje em Itália é uma impensável fatalidade, um desastre repentino e brutal.
O caso italiano repete-se, talvez numa dimensão menos assustadora, por essa Europa fora. Mas não só. De repente o mundo tropeçou na pandemia. Quarentenas sucessivas são decretadas. Governos reclamam mais poderes para poder atacar o vírus. À sombra da peçonha, Órban, na Hungria, faz xeque-mate às liberdades mínimas, prolongando o estado de alarme indefinidamente. Um perfeito golpe de estado.
Trump gargareja desculpas pelo atraso tentando minorar uma posição inicial imbecil. Bolsonaro desce, se é possível descer, aos patamares do massacre.
Da nossa Europa, de quem se esperava uma decência mínima, um ministro holandês grunhe obstáculos e semeia culpabilidades contra medidas económicas que permitiriam um alento básico a países como Espanha, Portugal e Itália.
Europa tonta, contaminada, doente. Hesita, titubeia, chuta para canto.
O fascismo espreita.
Alice Brito