Porquê votar a favor do estado de emergência? – por Pedro Soares

Portugal tem, há mais de uma década, legislação em vigor para enfrentar situações de calamidade e de emergência, por razões epidemiológicas, de catástrofe, ou outras. A legislação que trata dessas matérias consubstancia-se essencialmente no Sistema de Vigilância em Saúde Pública (Lei n.º 81/2009) e na Lei de Bases da Proteção Civil (Lei n.º 27/2006). Numa situação como a que vivemos, em que a proteção das pessoas, o corte de linhas de contágio e a salvação de vidas são prioritárias, a existência deste quadro legal é fundamental para enfrentar a pandemia, a par da capacitação do Serviço Nacional de Saúde.

Respaldado por esta legislação, o Governo sempre teve competências para tomar medidas de exceção indispensáveis em caso de emergência em saúde pública, incluindo a restrição, a suspensão ou o encerramento de atividades ou a separação de pessoas e circulação de viaturas, de forma a evitar a disseminação de uma infeção ou contaminação.

As medidas necessárias e indispensáveis para tornar exequíveis as normas de contingência para as epidemias e cuja eficácia depende da celeridade na sua implementação, teriam tido força executiva legal imediata caso tivessem sido assumidas logo de início pelo Governo. No início da última quinzena de Fevereiro já se sabia da situação em Itália e da inevitabilidade do contágio chegar a Portugal. Pois só a 20 de Março são adotadas pelo Governo medidas no âmbito do regulamento do estado de emergência. Marcelo Rebelo de Sousa contribui para este atraso com a ideia de que era necessário esperar pelo decreto do estado de emergência.

A Lei de Bases da Proteção Civil prevê a declaração da situação de calamidade, por resolução do Conselho de Ministros. Neste contexto, o Governo aciona um plano de emergência de âmbito nacional, pode  estabelecer cercas sanitárias e de segurança, limites ou condições à circulação ou permanência de pessoas, outros seres vivos ou veículos, nomeadamente através da sujeição a controlos coletivos para evitar a propagação de surtos epidémicos, intervir diretamente nos serviços públicos de transportes, comunicações e abastecimento de água e energia, bem como do consumo de bens de primeira necessidade, requisitar pessoas, serviços e bens, mesmo no setor privado.

O que trouxe então de novo o decreto da declaração do estado de emergência (Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18 de março), proposto por Marcelo Rebelo de Sousa e aceite pela Assembleia da República sem oposição?

Trouxe a suspensão dos direitos dos trabalhadores, do direito à greve, dos direitos de reunião e de manifestação, do direito de resistência ativa ou passiva. Nunca tal tinha acontecido desde a instauração da ordem constitucional democrática. Não havia necessidade. Sobretudo perante a notável consciência da população ao adotar, com elevado grau de sentido de responsabilidade social, as medidas de contenção e proteção aconselhadas pelas autoridades sanitárias. Não se conhecem situações graves de não acatamento. Tem havido exceções? Sim, mas as autoridades sempre tiveram meios para agir, tanto ao nível da administração central como local.

O estado de emergência era desnecessário e é particularmente perigoso para a saúde da democracia e da nossa vida coletiva. Não nos iludamos, estancada a crise sanitária, o que aí vem é uma crise social e económica de enormes dimensões, com contornos políticos dificilmente previsíveis. Marcelo Rebelo de Sousa antecipa-a  e impõe, desde já, uma espécie de consenso nacional para o presente e para o futuro; amarra os partidos a uma falsa ideia de unidade nacional, submeter a opinião pública à convicção de que estamos todos no mesmo barco e a combater do mesmo lado nesta guerra.  Muitos alinham nesta onda que só pode vir a dar respostas securitárias e autoritárias, pois a crise é e será assimétrica e o capital não deixará de se querer impor na recuperação do sistema. Vão ser os trabalhadores, os setores sociais de menores rendimentos e mais precários e as populações mais desprotegidas a arcar com o maior peso das consequências deste abalo.

No decreto do estado de emergência não consta, nem ficou acautelada, a proibição dos despedimentos, a garantia de 100% do salário a quem seja afetado pelo lay off  das empresas ou tenha de ir para casa, nem a proteção dos trabalhadores precários ou autónomos, nem o reforço dos apoios aos mais idosos, nem moratórias ao pagamento das rendas de casa ou dos empréstimos à habitação para as famílias com dificuldades ou para o pequeno comércio, nem o congelamento dos preços dos géneros e outros bens, nem a proibição da especulação económica. Mas está a suspensão dos direitos dos trabalhadores, do direito à greve e à resistência.

É surpreendente como pessoas com responsabilidades políticas e um percurso na esquerda radical vêm defender o estado de emergência porque, supostamente, só assim haverá latitude suficiente e condições para o Governo tomar medidas mais exigentes. Com o estado de emergência aprovado no Parlamento sem oposição, a seguir à suspensão dos direitos dos trabalhadores, do direito à greve, dos direitos de reunião e de manifestação, do direito de resistência ativa ou passiva, só resta mesmo a limitação da liberdade de expressão, da liberdade de imprensa, da liberdade de associação ou dos direitos, liberdades e garantias de participação política dos cidadãos. É por isso que serena e obedientemente se espera, a bem da nação?

Há quem chegue ao ponto de considerar que há uma exigência de solidariedade institucional entre órgãos de soberania que deve colocar em causa o debate sobre a oportunidade da decisão do Presidente da República. Certamente que, por maioria de razões, também considerarão que não deve ser colocada em causa a requisição civil dos estivadores que lutam contra o despedimento e a ação ilegal dos operadores portuários.

São precisas medidas sociais e económicas robustas para enfrentar o que aí vem e já começa a acontecer. Mas essas medidas não vão cair do céu. Vai ser necessário lutar para que aconteçam. As diferenças sociais também não acabaram, pelo contrário, tenderão a agravar-se. Por muito que custe a alguns, o vírus não eliminou a luta de classes que “e pur si muove!”  Com este cenário, precisamos no imediato de diminuir o contacto social, mas não devemos permitir que nos diminuam a democracia. Porquê votar a favor do estado de emergência?

Pedro Soares

Docente universitário

 

Imagem de destaque: Police car lights| Shutterstock |©By Chaikom

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