A situação de pandemia é uma ameaça inédita nas nossas vidas. Ganhámos consciência quão decisivo é conseguir condições de prevenção e de corte das linhas de contágio pelo COVID-19. É verdade que a ameaça paira sobre toda a sociedade, até os ricos podem ser afetados, mas não tenhamos dúvidas que a vulnerabilidade é muito maior nas pessoas sujeitas a qualquer forma de desproteção, seja social, sanitária, laboral ou económica.
Esta é a razão pela qual o problema não se resolve apenas com hospitais, apesar da óbvia importância da capacitação do Serviço Nacional de Saúde para enfrentar a doença. E também é a razão pela qual se torna criminosa a execução de despejos de famílias de baixos recursos em bairros municipais. Os despejos sem alternativa habitacional, como aconteceram recentemente, aumentam a desproteção e potenciam as condições de fragilidade. Como é possível estar em recolhimento domiciliário sem ter uma casa com o mínimo de condições? Como é possível proteger a família numa situação de grave instabilidade habitacional?
A imprensa divulgou casos recentes de despejos de habitações municipais no Porto, em Lisboa e em Almada, envolvendo dezenas de famílias, com crianças e até bebés. Como é possível que isto tenha acontecido em plena pandemia?
Em Lisboa, os despejos no Bairro Alfredo Bensaúde, nos Olivais, começaram no dia 5 de Março promovidos pela empresa municipal Gebalis, com grande aparato policial e sob responsabilidade direta do presidente da Câmara Municipal de Lisboa (CML). Apesar de ter sido anunciado que os despejos tinham sido suspensos no dia 12, de facto ainda houve desocupações no dia 13.
Ao longo de uma semana, foram atiradas para a rua cerca de 70 pessoas, incluindo crianças e bebés, a quem não foram dadas alternativas habitacionais e que acabaram por pernoitar em carrinhas ou tendas, entretanto deitadas abaixo pela polícia. Na reunião da CML de dia 12, que decorreu enquanto estavam em curso os despejos, o presidente não foi interpelado por nenhum vereador sobre o que se estava a passar no Bairro Alfredo Bensaúde. Em plena pandemia, os despejos não eram assunto?
É inadmissível que, em plena crise habitacional de uma enorme dimensão como a que se vive em Lisboa, perante a conhecida falta de resposta do governo e do município ao problema e no meio de uma pandemia que atingirá de forma mais grave os que têm menos condições de proteção, tenham sido levados a cabo despejos de famílias pobres, sem quaisquer alternativas habitacionais.
Mais grave ainda é que a lei não está a ser cumprida. A imprensa referiu denúncias de não cumprimento de regras básicas, como o facto de as famílias não terem sido previamente notificadas, de não ter havido qualquer iniciativa prévia dos serviços para consulta dos afetados ou para apoio judiciário e de não lhes ter sido dada qualquer alternativa de alojamento adequado, nem permanente nem temporário.
A Lei de Bases da Habitação refere, no artigo 13º, que o “Estado, as regiões autónomas e as autarquias locais não podem promover o despejo administrativo de indivíduos ou famílias vulneráveis sem garantir previamente soluções de realojamento” e que as “pessoas e famílias carenciadas que se encontrem em risco de despejo e não tenham alternativa habitacional têm direito a atendimento público prioritário pelas entidades competentes e ao apoio necessário, após análise caso a caso, para aceder a uma habitação adequada.”
A Lei do Regime do Arrendamento Apoiado que se aplica aos bairros municipais, refere que “os agregados alvos de despejo com efetiva carência habitacional são previamente encaminhados para soluções legais de acesso à habitação ou para prestação de apoios habitacionais.”
Nenhum dos mecanismos legais que prevê a proteção dos inquilinos em caso de despejo tem vindo a ser devidamente cumprido. A lei só serve para despejar, para proteger quem fica sem casa parece não existir.
No acordo estabelecido entre o PS e o BE para o executivo da Câmara Municipal de Lisboa, o “reforço da transparência e da proteção dos inquilinos, através da suspensão dos despejos de imóveis municipais quando verificada a carência económica dos respetivos inquilinos e não se encontre solução adequada para o realojamento dos mesmos” faz parte do compromisso. Repito: o compromisso é a suspensão dos despejos sem alternativa habitacional. O que se tem estado a passar no Bairro Alfredo Bensaúde, nos Olivais, é um gravíssimo incumprimento do acordo, devendo ser exigido um esclarecimento formal ao presidente da CML e cabendo ao BE retirar as devidas consequências.
Um presidente de Câmara que manda despejar pessoas com carências económicas sem propiciar alternativas habitacionais dignas, como tem acontecido em Lisboa, não está a defender nem a lei, nem o interesse público, nem os seus munícipes que mais precisam de ser apoiados, incluindo crianças. A esquerda não pode hesitar sobre os seus compromissos com os mais desprotegidos, nem relativizar estas situações. Não basta mandar alguém assistir aos despejos, tem de confrontar o presidente da CML com o grave incumprimento do acordo que suporta a maioria municipal em Lisboa e exigir o urgente realojamento de todas as famílias despejadas.
Carmo Bica
Autarca BE